Babbdi é um personagem incrível.

Existe uma atmosfera que compõe todo lugar que visitamos. Seja pela estética, clima ou pessoas, um lugar vai ser adornado de personalidade e caráter que resulta no imaginário observador, uma suposta alma.

Essa “alma” é chamada pela arquitetura de “Genius Loci”.

Cunhada em referência à Divindade Romana de mesmo nome, Genius Loci remete a alma a protetora do lugar, ou em termos menos esotéricos, a influência subjetiva do ambiente psicológico.

Quando estamos em um lugar “estamos” em dois sentidos: Física e metafisicamente. Nos transportamos em corpo, mas nossa mente lê os ambientes na medida em que existimos e nos adaptamos a cada um deles, muitas vezes até inconscientemente. Como você se comporta em meio a uma cidade pequena litorânea com praias e um belo veraneio? Agora está no meio de uma megalópole global, perseguida por arranha-céus e prédios ultramodernos.
Agimos diferente, e mesmo se tiramos fatores socioculturais (na medida do possível) o ambiente em si molda nossa ação , costumes e imaginário. Isso se aplica no momento em que o tempo todo estamos interpretando a expressão artística arquitetônica - que em meio a metrópoles tendem fortemente à opressão e opulência - inerente a todo ambiente tocado pelo ser humano a nível habitacional ou não.

A arquitetura seria uma arte útil?

- No meio de uma praça você encontra uma estrutura arcada, isto é uma escultura ou uma obra arquitetônica?

Você iria me perguntar, provavelmente, o tamanho dessa estrutura. Talvez na intenção de investigar se pessoas usariam como abrigo, talvez para chuva, talvez para esperar um ônibus?

Já adianto que não existe uma resposta para esse dilema, mas é interessante como de imediato muitas pessoas buscam a utilidade para atribuir a arquitetura. Acontece que a funcionalidade nem sempre é o motivador das construções.


A Arquitetura sempre serviu a reis e falsos deuses, para eles entrava não como função, mas muito mais como expressão de magnitude. Apesar da alta expressão cultural, castelos e palácios são utilizados como ferramentas de opressão e poder, mas essa ferramenta é muito mais um uso político externo à obra do que contida em si. Enquanto existem sim obras propagandas, é a arte sendo utilizada, mas não herdando uma utilidade própria e inerentes a qualquer obra fora de contexto sócio cultural. Uma vez que tiramos a propaganda do contexto ela se torna apenas expressão, como castelos, hoje em ruínas soterrados por verdadeiras torres de metal.
Ainda assim, enquanto poderosos podem usar a arte, para os outros apenas a funcionalidade lhes resta. Ter uma morada, um lugar para dormir, seria triunfar e não temos o luxo de expressar mais do que isso. “Luxo”, porque muitos aspiram ter uma casa dos sonhos ou o seu próprio quarto ou até qualquer lugar para dormir. Porém, mesmo que apenas funcional, todo lugar nasce de um ninho que o molda culturalmente, tornando assim um pedaço artístico que herda traços expressivos e pessoais de uma sociocultura de um nível que talvez, aquelas pessoas se sintam tão próximas aquele lugar , por pior que seja, que se negam a sair dali a qualquer custo.

Meu avô e minha avó fizeram uma casinha no subúrbio de Salvador que eventualmente se tornou uma favela devido ao crescimento rápido da cidade. Foi lá onde meu pai e meus tios cresceram.
Meu pai sonhava em morar em um prédio, sempre que via aquelas grandes estruturas imaginava como seria morar no alto e ver tudo de lá, desconectado do mundo.
Já alguns tios meus sabiam que nunca iriam sair dali. Não por falta de oportunidade, mas por vontade própria. Meu avô e minha avó montaram tijolo por tijolo daquela casa que na medida em que meus tios cresciam se tornou 2, 3, 4 casas e hoje tem até uma igreja.
Eu vi, na minha infância, aquele lugar mudar muito. Mesmo que seja uma casa apertada, torta e um lugar perigoso, ao lado de um trilho de trem e não tenha asfalto na rua, aquele lugar tem o cheiro e a sensação de família. Meu avô, Minha avó e meus tios montaram o Genius Loci daquele lugar. Por isso, talvez, meus tios se negam a sair dali.

Casos como esse, juntos aos opulentos castelos de concreto geralmente não muito longe, formam o Genius Loci, o sumo da subjetividade monumental da arquitetura, um senso coletivo - ainda que subjetivo - de “estar”, livre de funcionalidade e cheio de expressão. Genius Loci é, talvez, oque define a liberdade suprema da arquitetura contra a utilidade.

A expressão pela arquitetura é um luxo e sua funcionalidade (artística portanto) é importada politicamente e não inerente à obra. Ainda assim, um fator cultural (e talvez até pessoal) cria uma camada imaginária de expressão ambiental. O mesmo pode ser processado em ambiente virtuais e é aqui que Babbdi Brilha.

O Genius Loci de Babbdi é um gigante maníaco e possessivo que, decadente, abriga em suas entranhas nichos pessoais. Sua ruína hospeda suas vítimas em perpétua prisão.

“Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo, não os olhos, mas a sua infinidade de portas e janelas alinhadas.” - O cortiço, Aluísio Azevedo

Começamos a aventura e encaramos enormes prédios que nos olham de volta. Eles estão cansados e nos respondem com um cheiro de abandono e morte. Estamos oprimidos aqui, nesse apertado corredor vazio rodeado por gigantes de pedra. Prédios quadrados, cinzas e ruinosos, suas pequenas janelas engrandecem ainda mais esses gigantes quando percebemos imediatamente que estamos dentro de um deles e somos, portanto, insignificantes.
Nosso primeiro contato com um personagem, de semblante homólogo ao Genius Loci , nos fala sobre fugir e usar nosso primeiro item, um bastão. Senti ali o cheiro de morte novamente e o medo de que esse cheiro eventualmente venha de mim.
Por sorte, não vinha dessa vez, já que logo a frente o homem fala sobre ter a sorte de ter conseguido um ticket para sair da cidade, mas sua filha, uma garota moribunda, talvez não vivesse até lá.
Meu instinto me fez bater nele com o bastão na intenção de roubar o ticket. Não aconteceu nada. Ele estava ali imutável, fixo como pedra, quase que em comunhão com o prédio, assim também estava todo e qualquer personagem com quem falamos aqui: estagnados.

E eventualmente me veio a sensação de fugir. Meu objetivo estava claro: precisava fugir de Babbdi. Mesmo sem saber por que, eu tinha essa urgência que me levou a tentar golpear o indivíduo com o bastão para roubar o ticket de trem, o único meio de fuga de Babbdi.

E imerso nesse afã e funesto, tenho uma surpresa agradável. Saio pela janela para me deparar com um parque infantil.

Esse contraste me pegou. Como pode no meio daquilo ter um lugar verde e colorido? Ali senti um gosto diferente desse Genius Loci e desde então o gigante opressor foi se tornando cada vez mais gentil e familiar.

Conhecer as ruas, becos e buracos da falecida cidade de Babbdi foi um prazer que poucos jogos me trouxeram. Busquei cada canto das entranhas desse lugar não pela gameplay ou conquistas, mas porque, no meio da incessante tentativa de fugir, me vi querendo cada vez mais ficar ali. Os Gigantes foram ficando cada vez menores na medida em que eu encontrava novos meios de navegar por eles, os personagens se tornaram mais próximos mesmo com poucas interações, eu os conhecia e sabia onde cada um estava, Alguns queriam fugir também, mas não tinham forçar ou saúde para tentar. Outros, assim como meus tios, fizeram dali o lar eterno e se negam a sair, confortáveis em meio às ruínas de Babbdi.

Nesse meio, eu vi meu personagem livre, jovem e com uma vontade de fugir, mas que foi entendendo aqueles personagens estagnados e me foi me prendendo ali também e querendo mais de Babbdi. Quando fugi, imediatamente voltei. E me vi recomeçando um jogo, oque não faço há anos.

Babbdi é especial e minha passagem por lá ficará lembrada por seu Genius Loci poderoso e opressor, mas que agora, decadente, se curva e permite que pessoas façam de lá seu lar. Por pior que seja eles vão ficar lá, talvez até a morte.

Esse jogo é fora da curva.

Reviewed on Oct 15, 2023


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