me coloque numa sala com 20 pessoas que dão “dicas de escrita” e só eu sairei vivo, causando explosões e derretimentos só com a força negativa que mentalizarei cada vez que alguém falar que “mostre, não conte!” é uma regra indiscutível. com meu martelo de Depende em mãos eu destruirei todos os guias sem asteriscos.

trails from zero não deixa de contar para mostrar, mas acredito que pela limitação estética que os spritezinhos charmosos tem, ele acaba se sentindo na obrigação de mostrar que está sendo contado. as aspirações literárias da série não são segredo pra ninguém — levante uma pedra e quatro fãs de trails vão te falar que o SC tem não sei quantas mil palavras a mais que senhor dos anéis, descasque uma cebola e nove vão enxugar os olhos antes de te dizer alguma frase com a palavra “worldbuilding”, e chacoalhe uma árvore se encontrar alguma — mas por estarmos em uma tela (e não em uma folha), a sentença “’Você está preso!’ Lloyd disse, exalando coragem” não cabe numa caixa de diálogo, que, portanto, é substituída por “Você está preso!”, seguida pela observação “como o Lloyd parece corajoso enquanto diz isso!” de outro personagem. pelo menos um quarto dos diálogos do jogo envolve um outro personagem apontando que o personagem que acabou de dizer X está no estado Y, ou te explicando como aquilo se relaciona com outro evento que rolou dez horas atrás. não dá pra só se referir pelo nome (afinal, não dá pra voltar as páginas!), então toda informação nova precisa ser cheia de apêndices diegéticos pra não deixar ninguém pra trás. de certa forma, dá pra ver isso como consideração (e eu não pretendo nunca prezar pelo que "respeita minha inteligência", também), mas é também uma reação de vítima.

não é a pior coisa do mundo, mas a mitologia de que a Falcom sempre pensa nos jogos dessa série como um só e acaba dividindo em dois no meio da produção (Sky FC e SC, Zero e Azure, CS1 e 2, CS3 e 4) porque ficou maior do que o que foi projetado deve ser em partes por causa disso. eu não me importo muito com esse problema isolado (e acho que isso é uma das coisas que os fãs mais gostam), mas sinto que os desenvolvedores queriam se ver livres dessas amarras – até porque nos cold steel essa parte do texto já melhora consideravelmente (sendo que eu pessoalmente acho que os modelos 3D de CS1 e 2 são bem menos expressivos que os bonequinhos desses jogos que vieram antes) e a história toda continua funcionando de um jeito ótimo.

fico pensando se as coisas que desgostei não foram exacerbadas porque a base do lançamento oficial foi a tradução prévia feita por fãs e não por pessoas que tem alguma intimidade profissional com escrita artística, e por isso os personagens todos tem uma voz tão parecida e as descrições são daquele jeito.

o bom é que apesar disso esse jogo tem ótimas dungeons e eu adoro como o urbanismo pop de crossbell (todo mundo com carinha de soyjak deslumbrado com internet e energia elétrica, se sentindo foda porque não é república e nem império, etc) influencia e é influenciado igualmente nos aspectos sobrenaturais. a falcom é ótima em alimentar tanto a galera “intrigas políticas!” quanto a galera “aura de dragon ball na hora de lutar e robô gigante” que estão em constante contenda porque não percebem que a graça da série é justamente ter os dois. também achei super legal como o conceito de gnose aqui é mais próximo ao do nosso catolicismo (“certo tipo de conhecimento é perigoso e pode acabar com sua individualidade”), diferente de grande parte dos JRPGs em que ela é indubitavelmente boa e necessária moralmente para as pessoas descobrirem por si mesmas a raiz do bem e do mal. ela não é vista como herege e os apócrifos não são escondidos, mas se desenvolve como resultado de certo cientificismo que se demonstra laico mas não é. uma dinâmica bem original e facilmente refutada dependendo do rumo da história, também, então torna todo o caminho bem colorido.

cada vez que eu começo um jogo desses e lembro que ainda faltam outros seis cinco quatro pra eu chegar onde quero chegar na história me dá certo desânimo, mas aí chega o final e me motivo de novo, vendo as coisas lentamente se formando e ficando mais esotéricas, como todas as grandes obras. o descobrir das partes mais ocultas do mundo se dando tão lentamente acaba refletindo a vida real de um jeito inesperado, e aí vale a pena mesmo ver o sol nascer.

Reviewed on Aug 27, 2023


3 Comments


8 months ago

esse é o começo de review mais engraçado que eu já vi meus parabéns

8 months ago

opa amigo bom dia, não sei se você já jogou eles, mas qual sua opinião nos Sky? fiquei curioso pra saber

8 months ago

@rafitacraycray joguei sim, os três sky e os dois primeiros cold steel. eu adoro o sky fc principalmente pela dinâmica da estelle com o joshua, ela é a única dos protagonistas até então que economiza um pouco nas descrições já que ela é esquentada e impaciente, o sc eu não gosto tanto exceto pelo final. acho a última dungeon maravilhosa e a história envolvendo os caras na matrix onírica é excelente. o 3rd é de longe meu jogo favorito da série e sinceramente acho que isso nunca vai passar - adoro o kevin, adoro as dungeons, as portas, o fato de não ter cidade, etc. acho que é o que eu mais gosto porque me lembra ys? pode ser!