"A expectativa é a mãe da decepção."

Talvez você já tenha ouvido essa frase em algum lugar, e não vou mentir, ela não é nem um pouco original. Mas isso não torna ela nem um pouco falsa.

Expectativa é a mente imaginando o que vai acontecer, ou como vai acontecer, ou quando vai acontecer, ou tudo isso junto. É a mãe da ansiedade, e também da decepção, da desilusão e da frustração.

Trazer isso em uma análise de jogo como preâmbulo soa como se eu tivesse desde já armando uma defesa prévia para justificar quaisquer “falhas” que o produto-obra venha a ter. Mas eu não funciono assim. Jogos não funcionam assim. Eu não acredito em “falhas”. Ao menos não falando de forma objetiva.

A única coisa que eu compreendo são frustrações, incômodos e divergências que alguém que consome uma obra pode ter com o objeto de seu consumo.

E como todo fruto de financiamento coletivo, Sea of Stars, ou em bom português, O Mar de Estrelas, foi um projeto com uma visão, uma proposta, um pitch que naturalmente criou expectativas:

“Com o toque da Sabotage em todos os aspectos, Sea of Stars almeja modernizar o RPG clássico em termos de combate em turnos, narrativa, exploração e interações com o ambiente, enquanto se mantém oferecendo uma fatia generosa de nostalgia e a boa e velha diversão simples”.

Com essa proposta, em sua campanha inaugural, os desenvolvedores mostraram detalhadamente suas ambições, quem estava envolvido no projeto e assim lançou-se ao público a pesquisa de interesse que é o financiamento coletivo.

Em pleno 2023, ano vigente, já se sabe que um financiamento coletivo não é tão somente uma forma de custear inteiramente um projeto. Estúdios indies recorrem ao processo também para angariar interesse e demonstrar para as publicadoras que o projeto tem viabilidade comercial.

Passando então por esse processo já tão comum em nosso tempo, o projeto do Mar de Estrelas em breves sete horas conseguiu apoio o suficiente para bater a meta e assim iniciou sua jornada de desenvolvimento, prezando ao máximo pela transparência, como se pode acompanhar pelas atualizações no Kickstarter.

A proposta apresentada pela Sabotage continha alguns pontos-chave: a beleza visual e a inspiração nos clássicos. Quais clássicos? Se for pra citar alguns, Chrono Trigger e Mario RPG estariam facilmente entre os dois maiores. Mas é possível visualizar também elementos presentes em Golden Sun, a franquia Zelda e até mesmo quem sabe em Donkey Kong Country 2, que nem RPG é.
Claro, afirmar categoricamente quais são as influências determinantes de um projeto é algo que somente dos desenvolvedores podem fazer. Nós como analistas críticos tão somente podemos nos limitar a repetir algo dito por eles ou especular.

Por exemplo, quando eu cito Donkey Kong 2, eu me refiro ao Squanky’s Bonus Bonanza, uma fase especial que permite ao jogador responder questionários sobre o jogo com perguntas baseadas na lore do universo e também em elementos metajogo. Sea of Stars tem uma área secreta onde fazemos exatamente isso, respondendo um quiz com perguntas que englobam eventos canônicos, referências às histórias do mundo, e detalhes técnicos como quantidade de pontos de magia necessários para usar determinado golpe.

Ainda na proposta, a Sabotage detalhou como pretendia abordar alguns aspectos principais: combate de turno sem encontros aleatórios e sem campo de batalha em separado, algo que a série Final Fantasy e outros RPGs clássicos faziam, sinergias entre personagens com golpes combinados, golpes com acerto temporal, ausência da necessidade de subir níveis para enfrentar desafios específicos e a possibilidade de quebrar o ritmo de combate em turno com a interrupção de golpes especiais de inimigos.

Diversos desses elementos citados estão presentes nos já citados Mario RPG e Chrono Trigger. Eles se tornaram grandes marcos na história do RPG justamente por apresentar esses elementos que tornam o subgênero de turno em algo mais dinâmico e estimulante. A escolha dessa direção é inclusive o que muitos críticos de jogos de RPG por turno apontam como solução para a rejeição que muitos jogadores têm com esse tipo de design de combate.

Ainda se mantendo na proposta vendida pela Sabotage, a intenção de modernizar a narrativa e a interação com o ambiente é algo que foi prometido na campanha. Aqui nesse ponto, confesso que o estúdio não foi muito detalhista em como pretendia modernizar a narrativa. Esse ponto fica muito em aberto e, ao meu ver, abre margem para muita interpretação, mas pretendo olhar isso melhor mais pra frente.

O ponto de modernização da interação com ambiente por sua vez recebeu muito mais detalhamento. A promessa é de que iríamos ter uma variedade grande de ações relacionadas a movimento: saltar, nadar, escalar, subir e descer de plataformas e beiradas, além de navegar pelos mares, tudo com uma imensa liberdade e expertise oriunda da experiência do estúdio com jogos de plataforma.

Aqui o próprio trabalho anterior da empresa, The Messenger, funciona como referência da qualidade que eles almejavam. E de fato, o produto final entrega todos esses elementos prometidos.

Tendo em vista essa proposta apresentada, o que vem a partir daqui se torna não mais algo dos desenvolvedores, mas expectativas do jogador. Digo isso porque eu li muito de colegas que Sea of Stars foi “decepcionante” ou que não entregou o que esperavam do jogo.

Não estou aqui pra defender o produto de acusações. Não estou aqui pra discutir expectativas das outras pessoas. Até porque eu não sei o que cada um esperava do jogo.

Mas volto a repetir o que disse no começo e que vale para todo e qualquer obra que você ou eu venhamos a consumir agora e no futuro: tudo que você criar de expectativa irá impactar no seu apreço pelo objeto que você irá de fato consumir.

Dito isso, O Mar das Estrelas conseguiu me entregar completamente tudo que prometeu e eu esperava dele. É claro que tenho divergências de algumas decisões que foram tomadas, mas eu mesmo já ressignifiquei alguns elementos que inicialmente eu tinha achado incômodos, mas que foi necessário entender melhor o propósito deles para respeitá-los e acolhê-los. Vamos lá esmiuçar esses detalhes.

Eu esqueci de mencionar como a Sabotage focou bastante no aspecto visual de Sea of Stars. Mas acredito que qualquer pessoa que tenha visto um gif ou trailer do jogo tenha reparado quão belos são seus atributos visuais. A animação rica e detalhada, acompanhada dos efeitos de luz e sonoros tornam Sea of Stars algo que eu poderia chamar “jogo ASMR”, uma vez que ele apela tanto para nossos receptores sensoriais de áudio e visual.

Não significa que Sea of Star faça cosquinhas no seu ouvido, sussurrando sons, mas que todo o aspecto audiovisual de animação, colorização e cenarização trabalham em uníssono para causar sensações extremamente agradáveis. O capricho é notável, cumprindo à risca as promessas que foram feitas nesse sentido.

No que diz respeito aos pontos mais prementes de game design, acredito que Sea of Stars seguiu alguns caminhos que foram muito, muito felizes. Os aspectos que foram prometidos na campanha foram bem endereçados. O combate é dinâmico e não costuma demorar muito. Ele ocorre de forma natural no ambiente que estamos explorando e contém as sinergias e sistemas já descritos.

O sistema optou por trabalhar com tipos de dano pra cada personagem, tanto físicos quanto elementais, conferindo a cada inimigo resistências e fraquezas pontuais a cada uma dessas características. Isso não significa que todos os inimigos tenham uma fraqueza ou resistência, entretanto, mas em algum momento eles irão se preparar para soltar algum golpe especial e será necessário gerenciar as ações durante o turno para tentar interromper ou não o ataque.

Como proposto, essa interrupção altera o fluxo do combate e permite explorar o sistema para reduzir os danos sofridos e maximizar os causados aos inimigos. Inicialmente eu tinha achado incômodo que algumas dessas “travas”, como o jogo chama, eram um tanto mal colocadas no turno, já que às vezes o combate já começava com algum oponente conjurando um ataque especial impossível de quebrar com os recursos à mão.

A real é que a intenção era justamente essa. Se fosse possível quebrar todo e qualquer ataque, seria impossível tomar ataques especiais, tornando o jogo que já é fácil em algo trivial demais. Da forma escolhida, o combate retém um pouco mais de dificuldade fazendo com que o jogador faça opções mais adequadas a cada momento: devo investir tudo para interromper esse ataque, ou posso encará-lo enquanto foco em outras coisas? A decisão é minha.

Mencionei que o jogo é fácil justamente porque ele não possui nenhum tipo de seleção de dificuldade e ele não é muito punitivo em relação à quantidade de dano causado/sofrido. Se o jogador dominar os golpes temporizados (timed hits) pode reduzir ainda mais o dano sofrido e aumentar o dano causado. Se formos colocar na balança o influxo de dano contra o tanto que causamos e podemos recuperar em cada turno, percebemos que essa matemática é bastante favorável ao jogador.

Isso não impediu a Sabotage de conferir ao jogo opções de customização da experiência. Muito melhor que selecionar modos de dificuldade, vamos encontrando ao longo da aventura artefatos que nos permitem ativar parâmetros que dificultam ou facilitam o combate.

Esse tipo de design é muito interessante, mas ele poderia ter sido trabalhado de uma forma mais interessante, penso eu. A empresa Supergiant é conhecida por trabalhar com limitadores e multiplicadores em seus jogos. São opções que permitem receber um ônus em troca de um bônus, o que torna a personalização da experiência bastante interessante, criando micro variações do mesmo jogo com vantagens e desvantagens.

Aqui no Mar de Estrelas, os artefatos positivos tornam o jogo mais fácil, os negativos impõe dificuldade. Simples assim. Alguns deles fazem essa concessão mista, impondo vantagens e desvantagens de forma interessante, mas a maioria apenas facilita ou dificulta de forma livre.

Personalizar a experiência então se torna algo completamente pessoal, sem impacto algum no metajogo. Não me entenda mal, isso é suficientemente bom para esse intuito, mas acho que ele não cria um estímulo extra para que o jogador opte por tornar o jogo mais difícil, já que não há benefício além do intrínseco a cada pessoa. Eu adoraria que tivessem optado por algo mais instigante, como faz a Supergiant em seus jogos, mas isso não configura nenhum tipo de defeito., já que funciona perfeitamente ao seu propósito.

Como não poderíamos deixar de abordar, a história de todo RPG é algo que salta em matéria de importância, já que estaremos boa parte do tempo avançando em diálogos e cenas que conduzem a narrativa do jogo e ela inevitavelmente tende a ser mais cobrada pelo público do gênero.

Mencionei que a Sabotage não foi muito detalhista quando mencionou a modernização da narrativa. Aqui faço um parêntese pro termo utilizado, “storytelling”, que talvez não seja plenamente contemplado pela tradução “narrativa”. O termo “modernização” também é suficientemente aberto para que tenhamos múltiplas interpretações. Afinal, como um novo jogo pode modernizar a narrativa de jogos clássicos de RPG.

A resposta que cheguei é inconclusiva. Eu não consigo enxergar como Sea of Stars faz qualquer tipo de modernização em matéria de condução, temática ou algo relativo à “contação de histórias”.

O roteiro é simples. Não temos aqui nada comparável com as tramas políticas e filosóficas de RPGs mais adultos clássicos, como Final Fantasy, Tactics Ogre, Suikoden ou qualquer outra franquia mais famosa. Temos na verdade uma história no mesmo nível de Chrono Trigger, Mario RPG, Zelda e Golden Sun, as maiores referências do projeto.

Não há grandes pretensões filosóficas ou temas mais adultos serem tratados em Sea of Stars. Temos uma aventura fantástica lendária à nossa mão, e assim como conhecemos Lavos em Chrono Trigger como o grande vilão do universo, aqui temos o Fleshmancer como grande antagonista, sem excluir outros personagens importantes.

O elenco é composto não só de personagens jogáveis carismáticos e com bastante personalidade, excluindo talvez o par principal que é um pouco mais modesto em matéria de personalidade, mas também uma riqueza de NPCs que são igualmente carismáticos.

Mas tudo e todos são relativamente rasos, não há uma profundidade humana mais avançada em nenhum dos personagens. É um RPG bastante leve e despretensioso, pra ser sincero, algo que poderíamos esperar de uma empresa como a Nintendo, por exemplo. Isso não é nem um pouco ruim, obviamente, se você não nutrir a expectativa que ele seja mais denso do que ele pretende ser.

Sea of Stars entretanto terminou com um sentimento muito gostoso em mim. Quando os créditos sobem e algumas cenas nos relembram de quão divertidos, surpreendentes, despretensiosos, heróicos e quentinhos foram várias de suas cenas e capítulos. A sensação de terminá-lo me trouxe um resgate tão bom de como eu me sinto em relação às referências que ele buscou, que é inevitável não nutrir um afeto tão positivo por essa pérola que o mercado indie me trouxe e que há muito não encontro em superproduções modernas.

Talvez a mentalidade otimista na medida certa quanto a ele tenha sido a grande responsável pelo apreço que tenho pra ele, de modo que fico um tanto triste por todos aqueles que não conseguiram se encontrar nele e desistiram por algum motivo, seja por não se darem com suas decisões, seja por terem suas expectativas frustradas.

Reviewed on Dec 03, 2023


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