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Onde uma árvore cresce mais rápido: no campo ou no meio de uma grande cidade?

Existe um termo em Game design sobre o jogo se fazer por conta própria, geralmente atribuído a jogos que têm uma mecânica principal tão inventiva e robusta que se ramifica quase naturalmente em submecânicas e dinâmicas diferentes e igualmente inventivas. O resultado desse processo criativo geralmente são jogos que surpreendem do começo até o final e demonstram um domínio de seu núcleo de gameplay que torna o level design intuitivo e coeso. Seria o game design emergindo de forma quase espontânea.


Geralmente, esse fenômeno acontece em uma atmosfera saudável de desenvolvimento e cooperação, mas eu acredito na existência de outro tipo de game design emergente, um que, apesar de muitas falhas, suas exceções florescem em uma essência imponente e até criam raízes fortes dentro da cultura de jogos.


Apesar de uma árvore seguir o processo natural de vida em um campo ou floresta remota, um estudo publicado na Scientific Reports indica que árvores podem crescer mais rápido em certas cidades devido ao fenômeno da ilha de calor. Ilhas de calor são caracterizadas pelo aumento acentuado de temperatura em cidades grandes e estão diretamente ligadas à modificação do meio ambiente pelo ser humano, como o desmatamento, a drenagem de rios e lagos, e, claro, o concreto e a poluição, que criam um microclima que pode ser de 3 a 10 graus mais elevado do que o normal. Grosseiramente falando, o caos das cidades cria uma estufa acidental que favorece o crescimento das árvores. Quem diria, não é?


Portanto, vamos imaginar esse bravo jardineiro amador que se sente corajoso o suficiente para plantar uma árvore grande no quintal de sua casa e escolhe plantar um Plátano, uma árvore linda e muito simbólica, não apenas por sua representação no panteão grego (que falaremos logo mais), mas também por ser uma árvore que cresce muito e muito rapidamente, especialmente em ambientes extremamente urbanos. Apesar de nosso jardineiro estar cuidando muito bem dela, ela aos poucos cresce sem a necessidade de seu jardineiro e muito logo, é um ser que o jardineiro não consegue mais controlar. O Plátano se molda ao seu ambiente, com vida própria e com uma capacidade entrópica de crescimento. Devil May Cry é exatamente esse Plátano para mim.


Devil May Cry é uma obra anárquica em contexto, que surge como a prole de uma entropia que só pode ser cultivada em um ambiente caótico, incerto e poluído. Eu não conheço o desenvolvimento de Devil May Cry, mas sua história ecoa em substância, tornando-se, como todo jogo acidentalmente criativo e emergente, deslumbrante.


Esse jogo possui 3 camadas que expressam intensamente. A primeira delas é uma faceta rasa, mas criativamente competente, de survival horror. Uma gestão de recursos que, a princípio, parece até sem sentido, mas vai se moldando à medida que o jogo cresce, se mostrando parte vital não apenas de suas mecânicas, mas também de seu carisma e substância. Em survival horror, no geral, se espera fragilidade. Precisamos nos ater aos recursos, pois eles fazem parte da casca vulnerável e, até mesmo, incompetente. Fazer o que queremos muitas vezes não é intuitivo e, em grande parte, nos veremos em um labirinto de chaves e portões, estaremos presos com criaturas monstruosas ou ameaçadoras.


Essa primeira camada colide com outra camada relacionada a Hack n slash e character action. Nesses tipos de jogos, esperamos POWER CREEP e estaremos o tempo todo sujeitos a testes de habilidade com botões. Reflexos, timing e precisão fazem parte das exigências de gameplay de um jogo em que somos, geralmente, deuses ou criaturas extramundanas. Tal qual em God of War, Darksiders, El Shaddai, em Devil May Cry nos apoiamos em entidades mitológicas para desconectar a protagonista do mundo material e trazer ainda mais a ideia de um ser poderoso e destruidor. Hack and slash brinca com poder e a capacidade mecânica de fazer o que quiser em termos de golpes, geralmente, os monstros estão presos com essa entidade divina ameaçadora.


Essas duas camadas possuem contrastes claros em ideias e projeções. Poderíamos esperar que elas não funcionassem bem juntas, mas Devil May Cry tem uma terceira camada que une esses dois opostos em uma prole essencialmente completa.

Dante é a camada que emulsiona os contrastes criativos e filosóficos do design de Devil May Cry.


Se voltarmos ao nosso imaginário caso anterior, um grande Plátano no meio de uma cidade pode parecer contrastante, mas para o panteão grego, essa seria uma paisagem que simbolizaria a passagem de Teofrasto, em que Creta tinha uma cidade com um grande Plátano, a árvore de Helena e as Ninfas. Esse Plátano era especial, pois suas folhas nunca teriam caído, acredita-se que sob sua copa teria acontecido um casamento de deuses, tornando-a uma árvore santa e eterna. Esse contraste entre o natural e o não natural pode ser relacionado contextualmente com um simbolismo tão simples quanto a espécie de uma árvore protagonista.

Em Devil May Cry, iniciei um jogo edgy e impenetrável sobre poder. Um personagem que parecia uma carapaça adolescente e implacável, como esperado de um hack and slash de PS2. A minha surpresa foi terminar um jogo sensível e vulnerável sobre orfandade.

Dante é um personagem ríspido, mas que com o tempo se mostra cheio de ternura e simplicidade. Dante é amoroso, sensível e suas tristezas florescem como poder, mas também com fragilidade e vulnerabilidade. Isso se torna mais forte ao final do jogo quando percebemos que Devil May Cry é sobre família e sua falta na vida de Dante, um personagem que, sem pai e sem mãe, busca um significado em coisas simples como a espada de seu pai, o brasão de família e uma mulher que parece sua mãe. Na busca por vingança, Dante terá conflitos com esses símbolos familiares e até enfrentará e matará o próprio irmão, Dante chega a ser digno de pena. Ao final do jogo, Dante está derretido e sua faceta indestrutível dá espaço a uma ternura suculenta que se mistura perfeitamente às mecânicas vulneráveis e implacáveis de Devil May Cry.

Dante é maior do que Devil May Cry mecanicamente, mas também substancialmente. Essa receita caótica desabrocha em um enorme e lindo Plátano no meio de uma selva de pedra impossível.

Dante é, de fato, filho de duas entidades platonicamente opostas.

Reviewed on Sep 03, 2023


4 Comments


9 months ago

lindas palavras; minha falta de fé me levou a acreditar que eu ia encontrar algum comentário anacrônico no meio, mas não uma dissertação sobre os temas do jogo e como eles complementam o design geral da obra

9 months ago

@Lenz kkkkk eu entendo demais, Que bom que curtiu S2

9 months ago

"Dante é maior do que Devil May Cry mecanicamente, mas também substancialmente" é algo que penso desde a minha primeira vez desbravando essa franquia. Mas nunca que eu pensaria em metáforas tão lindas como as que você escreveu nesse lindo texto!
A herança de um ex-resident evil 4 é muito mais sentida nesse do que nos outros jogos, e eu não curto muito, mas com o que você falou passei a olhar com outros olhos.

Eu achei que você ia gostar um pouquinho e depois esquecer kkkkkkkkk fico muuuuuuito feliz que gostou!!

9 months ago

@noventaporcento VOCE ACERTOU E MUITO! obrigado pela indicação! Master mandou acertadíssimo