O surrealismo consegue brincar com nossa realidade a ponto de quebrá-la?

“O Surrealismo é destrutivo, mas ele destrói apenas o que ele considera ser grilhões que limitam nossa visão.” - Salvador Dalí

Para mim, o surrealismo é, na verdade, nossa mais fiel janela à realidade.

Você enxerga seu pensamento? Essa voz em tua mente, sequer consegue ouvi-la, como ela se parece? Essa imagem que vê é a mesma que enxerga ao olhar no espelho ou uma imagem que tem de mim? Como você forma essa raiva que sente? Essa confusão, essa dúvida ou esse amor?

Nosso pensamento pode ter cheiro, gosto, cor e até textura, mas é completamente livre de forma. Enquanto a arte luta para formar pensamentos, o surrealismo abraça a liberdade e, portanto, se torna mais real ao imaginário, à própria expressão.

Uma arte, porém, consegue transmitir sensações tal qual pensamentos conseguem, por isso sentimos a arte. E também, tal qual pensamentos, não precisamos de intenções, personalidade e nem justificativa. A arte "é" sem um porquê. Apesar da crítica e artistas buscarem as formas que entregam respostas, alguns movimentos se livram disso e, portanto, para mim, conseguem de fato ser.

Uma arte viva é real, uma arte viva é fiel ao imaginário que a criou, sem forma, mesmo que contenha, em si, formas.

Vamos para o início do Renascimento e o que acreditamos ser a semente do movimento surrealista (que viria muitos anos depois): Vamos buscar Bosch em suas artes horrendas, nojentas e livres.

"Pouco se sabe da vida de Bosch" é o que vamos ler em qualquer livro e artigo falando dele, alguns com um tom lamentável sobre esse fato, outros, com os quais eu concordo, acreditam que não precisamos saber da vida dele, já que sua arte fala por si, então vou mostrar para vocês como eu ouço a vida de Bosch através de sua arte.

Bosch enxerga um mundo horrendamente brilhante. O cristianismo medieval parece tomar conta de tudo e é extremamente gráfico em seu terror. Se observamos obras como o Jardim de Delícias e a Tentação de Santo Antônio, vemos a forma mais próxima do religioso, mas que ainda assim distorcem a realidade com criaturas grotescas e o uso dos planos e perspectivas que causam uma confusão imediata. A mente de Bosch parece ser livre dos pregos religiosos, mesmo que dentro do contexto cristão, e isso pode ser visto (até como um toque pagão) em suas obras ainda mais surreais como a Visão de Tondal. Enquanto artistas buscavam os grilhões da realidade, as artes de Bosch conseguem quebrar os limites físicos que tomamos como canônicos e incorporam a mitologia e a criatividade, ou melhor, realidade, de um imaginário único e pessoal. Bosch se entendia? Talvez a falta de entendimento tenha trazido esses conflitos que deram vida a essas obras e as libertaram, enfim. Mas, essas obras responderam aos seus conflitos ou os ampliaram? A expressão e o imaginário em papel conseguem acalentar Bosch?

Para mim, não existe arte mais viva do que a livre de forma. Somente a arte tem a capacidade de tornar vivo o plano imaginário. Se este não tem grilhões, por que insistimos em colocá-los (seja em autoria ou consumo)?

Quando joguei How Fish Are Made, eu vivi uma obra surrealista livre de forma, mas que formou sensações extremamente reais em mim. Como a arte é poderosa, não?

A priori, vivi o dilema das decisões, essas que constantemente nos fazem sentir o ambiente grotesco, o cheiro de peixe morto se confunde com a ferrugem, e estamos então nas entranhas de um organismo horrendamente vivo. O mundo é horrível, mas podemos escolher não ser. Podemos escolher ser melhores do que tudo isso. Eu estava convicto desde o começo da minha escolha e a abracei até o fim.

A filosofia de design do museu aqui funciona perfeitamente. Jogar esse jogo é como um passeio no museu ou até mesmo em um parque temático, em que cada sala temos um encontro e nos vemos cada vez mais livres de forma.

Ao final do capítulo um, tomei minha decisão.

No capítulo seguinte, eu fazia parte do ambiente. De uma forma visceral, eu era a gordura residual da podridão daquele ambiente. Meu papel agora não era apenas tomar a decisão, já a tinha tomado, mas agora estava no momento de levar minha decisão a outras pessoas.

Eu me vi perdido. Minhas decisões, minhas escolhas, elas muitas vezes são só minhas, mas suas consequências não são. Elas transbordam. Eu queria que essas decisões tivessem formas. Ter a confiança, medo e esperança uma imagem e forma limitada, eu conseguiria lê-las, entendê-las e resolvê-las. Mas não têm forma alguma. Vou levando um a um em minhas decisões, planos e, no final, o que vai restar de mim? É esse sabor que eu passo? Esse cheiro, essa sensação de metal com sangue?

"É temporário, até que eu consiga resolver tudo."

Como colocar isso em uma forma? Como colocar o tempo que perdi, que fiz outros perderem, como colocar a esperança e o medo que a acompanha em 4 arestas? Ou em 16 botões?

O surrealismo responde com forma alguma. Eu quero abraçar isso como esse jogo abraçou. Obrigado, How Fish Is Made, por ser minha resposta agora. Obrigado, Bosch, por não se entender e obrigado ao surrealismo e à arte por serem livres, tal qual nosso imaginário que deve ser para sempre.

Reviewed on Nov 01, 2023


2 Comments


6 months ago

O surrealismo é mesmo fascinante e confuso. Eu nunca tinha visto essas obras (e o jogo) obrigado por me apresentar ;)

6 months ago

@noventaporcento vale tentar! 30 minutinhos!