O que faz alguém jogar videogame? Digo, jogar mesmo, sem ver o tempo passar, ficar vidrado naquela tela, imerso naquele mundo fictício. Desde a exploração brilhante de um metroidvania à uma bossfight desafiadora de um souls-like. Qual é o nome? Engajamento? Hiperfoco? Compulsão? Vício? Por que tu continua jogando? Por que isso importa tanto? Quantos cliques tu precisa dar por hora pra ter valido a pena jogar aquilo? Por que tanta gente mede o valor monetário de tal jogo pela sua duração?

Nunca li livro algum sobre game design. Também nunca joguei nenhum Dragon Quest – e mesmo assim moon me encantou o suficiente pra me fazer querer entender ele. Querer dar valor também.

Ser ativo, fazer questão, interagir. É assim que videogame se expressa. Ou melhor, é assim que o player se expressa pelo videogame. É comunicação. Mas de que forma? Porque ao meu ver, muita gente se incomoda ao ter seu espaço de interação com a tela invadido, seu controle retirado, cutscenes, seções de walkie-talkie, momentos scriptados e outras convenções usuais da indústria de videogames.

Essa é a só a ponta do iceberg, provavelmente, porque muitos incômodos também podem ser gerados pela própria interação: teste simples, pergunta pra qualquer amigo teu se ele prefere os tiroteios do Arthur em Red Dead Redemption 2 ou as tarefas braçais do rancho de John Marston. Muito provavelmente ele vai preferir a parte onde a gameplay se demonstra mais ativa, pelo combate, pela velocidade, talvez? As atividades no rancho do John são extremamente demoradas, seja pela extravagância no capricho das animações do jogo e também pela tentativa honesta de captar a vida de um fazendeiro, muito do que tu faz nessa seção inteira é baseado em espera e recompensa. E a catarse da recompensa não existe, é apenas avanço na história seguido de diálogos casuais que integram aquela parte do jogo. E a catarse de um tiroteio? O impacto dos corpos agindo e reagindo, a satisfação em ouvir o som das balas, toda a composição de uma batalha frenética com uma provável trilha de fundo pra ajudar: todos esses elementos flutuando pela cabeça do player conseguem satisfazê-lo mais facilmente do que qualquer outro tipo de atividade no jogo.

Sobre a velocidade, é simples: numa mídia com receptor ativo, a tendência é que ele esteja SEMPRE na ativa. A demora é fatal, e a maioria das vezes que tu escutou/leu algo tipo “nossa, a gameplay de jogo X é bem melhor que a de jogo Y porque é mais fluída” a pessoa provavelmente tava se referindo à velocidade da gameplay e não tinha nada a ver com fluidez. Talvez seja por isso que as pessoas realmente acham o combate de Dark Souls III melhor que o do primeiro. Muita gente quer algo mais imediato, pouco diálogo, pouca cutscene, poucas mecânicas que façam o player esperar (e as vezes até pensar) porque ele sente que vai enlouquecer com isso. Até mesmo os jogos de turno tão sendo EXTINGUIDOS por conta desse tipo de pensamento. É uma visão bem equivocada, sabemos – preferência existe, mas até que ponto ela vai te restringir a experimentar coisas novas? Eu mesmo, tenho Ninja Gaiden II nos meus favoritos e sinto que minha casa explodiria se eu parasse de usar lifegems em Dark Souls II, talvez eu até esteja sendo hipócrita nisso, mas não vejo problema em preferir certo ritmo de gameplay, desde que isso não defina sua perspectiva e expectativas pela mídia – videogames – como um todo.

O jogo do AMOR, mais conhecido como moon, se comunica com o player diante de alguns objetivos. O primeiro é fazê-lo ODIAR JRPGs a ponto de jogar todos só pra chegar e falar “haha moon é melhor” O primeiro é satirizar RPGs japoneses da época, apresentando um cavaleiro que mata diversos monstros com o objetivo de derrotar um dragão que sumiu com a lua daquele lugar. O combate não é jogável, é assistível. E a narrativa se subverte a partir do ponto em que a mãe do protagonista manda ele desligar videogame e ir dormir – até que ele é sugado pela TV e obrigado a virar um NPC daquele jogo: moon: Remix RPG Adventure. Sim, NPC mesmo, o real “protagonista” é o cavaleiro que te apresentaram e no momento ele se aventura, grindando (quem diria) pra conseguir chegar até o dragão que ele tinha derrotado antes – exato, isso já tinha acontecido antes, na lua falsa, mas o real jogo que mostra a perspetiva do protagonista, do herói daquela história. Em moon, esse mesmo herói em poucos minutos de jogo tem suas atitudes questionadas, e o player tem a tarefa de coletar pontos de amor pelo mapa, seja conversando com NPCs, fazendo quests e, principalmente, salvando as pobres almas dos animais que o cavaleiro assassinou – ou seja, sendo o verdadeiro herói daquela história. Seus pontos de amor servem pra aumentar suas ações por dia, vulgo a stamina do jogo, e se ela acaba: é game over. O savepoint do jogo é sua cama, dormir restaura energia, e também transforma pontos de amor em pontos de ação. Sim, o jogo refutou a frase “dormir não dá XP”.

Há muitas coisas que esse game quer comunicar aqui, e o valor que ele tem é comunicar todos seus objetivos de forma mecânica, pela interação. O núcleo de gameplay do jogo está na espera, estimulando o bom coração do player pra explorar melhor cada ciclo de dia e noite e a rotina de cada NPC que ele encontra. Acho que é por isso que o amor vira stamina, o fato de você jogar e se abençoar com “a arte de dar a foda”, digo, o fato de você querer fazer questão do jogo e do que acontece naquele mundo fictício é um ato de amor pela mídia, e serve de estímulo pra tu continuar fazendo isso, até mesmo no sentido mecânico. Todos os NPCs, apesar de caricatos, são simpáticos e tem sempre algo legal e agregador a dizer. Todas as quests são memoráveis, o player tá sempre por aí vagando e fazendo uma boa ação pra salvar aquele mundo, voltar para o mundo fora da tela e pra reconsiderar o fato dele estar jogando um videogame. E o player sabe disso, ele sabe que tá dentro de um jogo (dentro de um jogo) e mesmo assim consegue dar fodas o suficiente pra espalhar seu amor pelo mundo.

Limitações no design do jogo também são fatores relevantes, porque elas conversam com suas ideias e até com features que tão implementadas na gameplay. Os diálogos com os NPCs expiram, fazendo com que eles pareçam menos reais e acabe com a graça de se aprofundar naquele mundo: mas isso é realmente um problema? Moon nunca tentou sugar o player pra dentro de seu universo, moon não tenta ser necessariamente imersivo ou coisa do tipo: moon quer unir suas três dimensões. Questionar a suspensão da descrença e integrar a casa do player (protagonista) ao mundo real do jogo e ao mundo do player do outro lado da tela. O mundo de você, o mundo de eu, o mundo de qualquer um que jogue essa merda autoentitulada anti-rpg. Uma feature legal do jogo que reforça esse meu ponto é o toca-disco: o jogo não tem música ambiente. Se opondo aos JRPGs da época, provavelmente, que sempre integram uma música bonitinha de fundo pra dar o clássico sentimento de aventura. Em moon tu se aventura quieto, a não ser que você, como player, queira escutar uma música de sua escolha pelo toca-disco: fun fact! Um dos discos do jogo é uma música BRASILEIRA chamada A Meu Pai Peço Firmeza de Padrinho Sebastião. Não cheguei a encontrar informações o suficiente pra saber se o resto dos discos são inspirados em músicas/bandas reais, mas é um toque muito genial deixar a música ambiente do jogo nas mãos do player.

Toda essa aproximação entre os mundos da experiência de moon, acabou me desconectando um pouco do jogo por um motivo bem específico, o que acaba me levando de volta à primeira linha dessa review: por que alguém jogaria moon?

O jogo me conectou, desconectou e me conectou de volta em diversos atos ao longo de minha jornada, me fazendo apreciar cada detalhe daquela experiência e fazer questão de continuar jogando, jogando o suficiente pra coletar todos os pontos de amor do jogo, até chegar no nível máximo (que é 30). Fiz isso tudo com sorriso no rosto porque, mesmo com ajudas externas, sabia que minha gameplay não era um passatempo de grind ou uma aventura curtinha que eu poderia ter zerado antes do ano novo pra dar nota no backloggd e esquecer o jogo: eu resgatei cada um dos animais e fiz cada uma das quests do jogo por amor. Exceto uma. A pescaria. Foi aí que eu me desconectei de moon.

Moon quer que tu jogue por amor, mas não havia amor algum em repetir a mesma tarefa diversas vezes, dependendo de sorte e jogando tempo fora por pura compulsão e complecionismo. O desejo insignificante de fazer tudo que há no jogo, mesmo na merda de um console que nem conquistas tem, caiu por terra quando eu percebi que eu não tava mais fazendo questão daquilo, só queria pescar 5 peixes de uma vez e zerar o jogo. Eu não amava aquilo, não amei a pesca, devo ter gastado mais de 5 horas só nesse minigame e eu não me orgulho disso. Serviria como uma recompensa ilusória de um perfeccionismo estúpido meu e talvez um agradecimento e congratulações da rainha da lua nos meus sonhos. Não vale a pena, moon me ensinou algo que ele mesmo se ofereceu para quebrar e me desfazer do que aprendi jogando. Sei que faltava literalmente apenas 1 ponto pra chegar no nível 30 de amor mas eu me sentiria culpado se tivesse conseguido passar do 29, então a primeira coisa que eu fiz foi desistir do concurso de pesca e ir direto pro Burnn comprar todos os CDs da loja. O último disco se chamava “moonfish”.

Zero o jogo. A desconexão é proposital, e a mensagem é transmitida da forma mais singular possível, fazendo o player praticamente engolir os temas do jogo, afinando tanto a linha tênue entre o amor e o ódio, quanto a linha de separação entre suas dimensões. Moon odeia o “jogar por jogar” e ama o player o suficiente para fazê-lo retribuir esse sentimento, de uma forma em que toda essa aventura é subvertida pelo que tu aprendeu enquanto espalhava seu amor pelo jogo.

Vou poupar spoilers diretos da história, mas lembre-se: o amor não pode ser expresso por simples números em um videogame.


29/30 :’)


Reviewed on Jan 25, 2023


7 Comments


1 year ago

bela review, e esse parece o videogame mais honesto já criado. achei lindo como o jogo te alcançou inspiração pra refletir sobre ele antes de se preocupar com "ler livro sobre game design", por que parece ser parte do sentimento que o jogo quer provocar mesmo. pelo menos do que já li sobre, tô enrolando há séculos p jogar.

1 year ago

Esse deve ter sido o texto mais lindo que já li nesse site. Obrigado, Lenz. Jogarei Moon por amor

1 year ago

Parece ser bem único, talvez único, bela review :D

1 year ago

Uau... simplesmente uau! Mandou bem para caralho, amigo! O primeiro parágrafo — e, por tabela, toda a discussão em torno do crescimento de um caráter alienante subjacente ao ato de jogar — me recordou de duas coisas: Who killed videogames? (a ghost story), de Tim Rogers, e WTF: Work Time Fun. Enquanto a primeira citação é apenas uma recomendação (texto bom para um caralho, puta merda), de certa maneira, WTF dialoga bem com Moon, dado que, usando uma colocação sua, ambos falam muito sobre o "jogar por jogar", mesmo que WTF esteja mais para uma provocação desenfreada sobre a (im)possibilidade emancipatória do ato de jogar. Em seus melhores minigames, como Pendemonium (nesse caso, você encarna um trabalhador de uma fábrica cujo único verbo é colocar a tampa em uma série de canetas para deixá-las prontas para a próxima fase do processo logístico), WTF retira um dos atributos mais prestigiados ao jogar um game do jogador — a player expression. Todo aquele entendimento quase apoteótico do apertar de botões é preterido em prol de um conjunto ínfimo de ações, o que torna o momento a momento repetitivo, alienante e sem alma, desconcertando o jogador a ponto de ele não ter nenhuma escolha senão perceber a condição dele (tanto que o término de WTF: Work Time Fun é um evento muito mais simbólico que qualquer outra coisa). Divaguei legal, mas isso só reforça a qualidade do texto. e.e
👏👏👏

1 year ago

@Soho valeu pelas recomendações amigo. Não manjo muito da existência de jogos que abordam esse tipo de coisa, e Moon me fez pensar sobre algo que falasse sobre vício, consumismo, traçar paralelos entre videogames e drogas, dependência, jogos de azar. Se tu souber de algo assim, dê nome, real fiquei interessado em mais jogos que debatem sobre o papel ativo do jogador

1 year ago

Pô, tecnicamente, estou a par de Takeshi's Challenge; serei honesto, porém: eu ainda não o joguei para confirmar a veracidade do que já escutei sobre ele.