Ring of Pain, o primeiro título do estúdio indie Twice Different, apresenta um roguelike de cartas com uma temática sombria e misteriosa. A impessoalidade e a fragmentação são características marcantes tanto da história quanto da jogabilidade, essas em conjunto conseguem construir uma atmosfera ideal para a proposta do jogo.

A obra ao propor o roguelike de cartas que vem se tornando um clássico após o sucesso de Slay the Spire que inaugura o gênero, traz consigo todo um arcabouço de complexidade de construção de uma build a partir dos itens encontrados. Os itens encontrados permitem diferentes builds e combos que se angariam na construção da jornada até o final do run.

Um roguelike passa pela ideia de repetição, o próprio título da obra apresenta a proposta de anel que é característico inclusive nas mecânicas. O anel remete a algo circular e assim são as diversas salas presente durante a run, cartas de inimigos, itens, baús e não menos importante as saídas, todas essas estão articuladas em círculo e o jogador deve atravessar seja enfrentando ou se esgueirando pelas diversas cartas, a frente sempre está presente 2 cartas e o lado que o círculo irá percorrer depende do jogador, seja no sentido horário ou no anti-horário. Ainda na ideia circular as diferentes fases das runs, que são 16, são dispostas de forma circular e ao “fechar” o círculo a fase final está disponível. A proposta de círculo, traz a ideia de repetição característicos dos roguelikes, ou seja, o gênero, a mecânica e o próprio título seguem a mesma concepção, estão todos na mesma página falando a mesma língua, o que está proposto é intrínseco.

Como um roguelike de cartas, a questão da estratégia e aleatoriedade são importantes, importantes inclusive no sentido de precisarem ser controladas para não se perderem, infelizmente talvez esse seja o maior problema de Ring of Pain. A estratégia na obra se dá pela direção da rotação do círculo, passar pelos inimigos, enfrentá-los, explorar toda a sala ou fugir o mais rápido possível, são várias decisões que impactam no sucesso ou falha da run, essa parte não apresenta problemas, até pelo fato de haver a mecânica de previsão da próxima ação dos inimigos. Já a parte de aleatoriedade que é complicada, os itens não são neutros em suas funcionalidades, vários se comunicam entre si mas não tem nenhuma comunicação com tantos outros, isso piora mais se for considerado a aleatoriedade da raridade, então, acaba por algumas runs simplesmente falharem pelo azar no RNG, a habilidade perde espaço para a aleatoriedade por causa do game design, talvez um melhor trabalho na construção dos itens para melhor controle da aleatoriedade fosse o ideal.

A obra apresenta uma característica bastante impessoal quando o personagem principal se faz presente em “primeira pessoa” e ao mesmo tempo não tem materialidade na obra, há espaços de equipamentos para serem preenchidos como as botas, luvas, armaduras, armas, etc, todas são equipadas, há diálogos com a personagem mas não nem por um momento uma materialidade da personagem. Essa abordagem acaba por sugerir o próprio jogador no lugar do eu-lírico em todos os sentidos, isso inclusive auxilia nas sensações desagradáveis que a obra tenta provocar com diferentes diálogos com o pássaro e com a sombra.

Sintomaticamente é abordado uma crítica ao maniqueísmo no desfecho final, o caminho da luz e sombras, que são postos como opostos, têm suas próprias questões que retiram a ideia tola da dicotomia entre bem e mal. Uma discussão relevante apesar de não inovadora, o mais relevante é a forma como é colocado o debate pois ele agrada pela objetividade e simplicidade. Definitivamente é um fator que agrega a obra sem defasa-la de nenhuma forma.

A ambientação na obra é bem interessante, todo o cenário sombrio junto aos diálogos e a história fragmentada auxiliam na concepção de mistério e “horror” que foi produzido, mesmo que em baixa escalas. Outro fator que auxilia na ambientação é a estética cartoonizada que abre espaço para o surreal, o medo que vai além das possíveis concepções mentais e apela para o imaginário, as cores também ajudam nesse aspecto com sobreposição de cores vívidas fazendo contrastes desagradáveis de forma proposital.

Concluindo, Ring of Pain é um jogo comum que consegue tornar o comum muito bem feito. Pois, apesar de certos problemas com a aleatoriedade demasiada, não é impossível controlá-las com a devida experiência e conhecimento dos itens e estratégias adquiridas ao longo do gameplay. É muito bem pensado toda a comunicação entre os elementos para estes trabalharem em conjunto e não dissociá-los indiferentemente, isso acaba por tornar o que é proposto sólido e de fácil entendimento. A proposta estética de horror é corroborada pelo diálogos, ambientação e arte oferecidos pela Twice Different, ainda há uma discussão sintomática de cunho filosófico para encerrar a jornada e colocar o jogador novamente na premissa que ronda toda a obra nos seus diferentes aspectos: o anel, o círculo, o infindável.

Reviewed on Oct 31, 2023


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