I Have no Mouth tem os elementos clássicos de um adventure da era de ouro do gênero, em especial os da década de 90. Mas o título coleciona uma série de elementos que o torna um destaque não só em relação aos seus contemporâneos e mas também aos seus colegas de gênero.

Primeiro que ele é baseado num conto de horror e ficção científica premiadíssimo de mesmo nome. Harlan Ellison, seu escritor, é um nome notável da literatura fantástica, tido como um dos pais da era New Wave da ficção científica, ganhador de vários prêmios tais como o Hugo, o Nebula e o Bram Stoker…condecorações concedidas para obras de ficção científica e também de horror.

Além dessa bela fonte e de ser uma excelente adaptação do seu material original, “I have no mouth and I must scream” tem uma estrutura e um loop de gameplay que foge do convencional. O comum no gênero é o jogador ficar empacado na história, sem conseguir avançar até descobrir como solucionar o quebra-cabeça específico daquele momento. Aqui temos uma proposta muito similar a isso, mas com um revés: algumas ações são capazes de resetar o capítulo, inviabilizar o “melhor final” do jogo ou criar um "softlock", onde não há solução senão começar tudo de novo.

Falar de “melhor final” implica que temos diversos finais e é exatamente o que temos na obra. Temos 5 capítulos, um com cada um dos 5 humanos torturados pelo computador/deus tecnológico AM. Em cada um desses capítulos precisamos passar por um psicodrama individual para superar as falhas de caráter de cada protagonista e...sobreviver. Após essa rodada de provações, temos um capítulo final que depende dos sucessos de cada personagem em seus cenários para possibilitar os 3 modelos de conclusão possíveis.

Essa estrutura foge um tanto do modelo mais popular da época, onde normalmente tínhamos uma maior linearidade e poucos títulos ousavam dessa forma, apesar de termos uma infinidade de experimentações idiossincráticas e com seus próprios revés no período em cima da fórmula padrão de adventure point’n’click.

De volta à trama, I have no mouth and I must scream é uma experiência completamente desaconselhável à pessoas que possuam algum tipo de trauma e possam se identificar de forma prejudicial com alguns dos personagens. Cada um deles possui transtornos psicológicos resultantes de eventos que transcorreram em suas vidas e eles estão presos em uma espécie de purgatório, onde o quase omnipotente AM diverte-se torturando e tripudiando de suas mentes.

Sim, esse jogo pode ser um gatilho forte para pessoas que já sofrem com “desgraçamento mental” por assim dizer, só para usar um termo bastante popular. Temas como suicídio, internação e perda de entes queridos, estupro, paranoia, canibalismo, mutilação de corpos em experiências científicas nazistas e sacrifício humano, dentre outros menos traumáticos, mas igualmente controversos, permeiam o roteiro e os diálogos.

Evitando qualquer tipo de spoiler, temos aqui um jogo que utiliza suas mecânicas para representar a tortura que o vilão da trama impinge aos protagonistas, com simulações crueis e viscerais onde cada um vivencia uma situação-problema e é confrontado com seus medos e pecados, havendo janela para tentar superar ou redimir seu passado. A insanidade de cada um já está em níveis que muitas das ações e situações horrendas e absurdas que vivenciam tenham pouco impacto, ao que cada um já passou por mais de 100 anos de encarceramento e tortura.

Apesar da imensa qualidade visual, artística, filosófica, de roteiro, temática e sonora, talvez o único ponto negativo que consigo apontar na obra seja seus quebra-cabeças obtusos e o sistema de dicas que, além de utilizar enigmas para tentar ajudar com citações de obras famosas, por exemplo, pune o jogador que as utiliza. Isso conduz bastante a experiência a salvar com frequência e carregar o save com igual frequência, já que a experimentação do jogador pode resultar em uma punição fatal, na redução de sua “resiliência”, recurso necessário para fazer o melhor final, ou ainda o já mencionado "softlock", onde se torna impossível avançar e é necessário reiniciar o jogo.

Mesmo com seu lado negativo, I have no mouth and I must scream entrega uma experiência fantástica em matéria de obra e expressão artística. Uma adaptação excepcional que carrega os elementos mais marcantes de sua fonte, especialmente o horror, já que a direção de arte se permite brincar com o surrealismo e o psicodélico, o sobrenatural e o tecnológico, enquanto desenvolve de forma brilhante suas temáticas, independente do sabor de seus finais.

Reviewed on Feb 13, 2023


2 Comments


1 year ago

Post Script
Fica aqui uma recomendação de um dos textos referências dessa review:
"A SINESTESIA DE HARLAN ELLISON: NÃO TENHO BOCA E PRECISO GRITAR"

1 year ago

Lembro que quando joguei eu tomei um softlock na fase do avião e fiquei PUTO porque eu não tinha save próximo, hahaha! XD