quando tentei jogar disco elysium pela primeira vez em 2022, confesso que me senti intimidada. foram vários os motivos: eu não estava tão acostumada com rpgs e o ato de distribuir stats e criar builds me parecia meio assustador, esse é um dos jogos favoritos da minha namorada e eu sabia que o jogo não tinha muito medo de trazer discussões políticas de forma explícita e com envolvimento direto do jogador. isso tudo antes mesmo de instalar ele. quando comecei a primeira run, me senti um pouco mais confortável, porém ainda intimidada. os momentos de humor me faziam rir e o conceito me intrigava, mas a vibe râncida do whirling in rags me deixava insegura. as roladas de dado pareciam ter uma importância monumentalmente além da minha compreensão. eu tinha um medo de que minha falta de engajamento político em geral iria fazer com que o jogo me chamasse de liberal ou algo do tipo. joguei por um pouco, acabei parando. em 2023, após ter me adentrado em rpgs (incluindo seu predecessor espiritual mais direto: planescape torment), decidi dar mais uma chance para o disco.

de fato, o lado político se mostrou um tanto denso demais para mim as vezes (apesar do jogo ter me chamado de comunista, o que faz um pouco mais sentido, eu acho) mas o lado humano começou a se adentrar. tive conversas interessantes com uma mulher da vila pesqueira cuidando de 3 crianças sozinhas, com um moleque de trás do bar que odeia se sentir minúsculo comparado ao mundo, com uma loira sempre visível no topo do whirling in rags fumando um cigarro, que se encontrava inicialmente inacessível. no final das contas o que me atrai em elysium é menos as conotações políticas reais e mais a construção política de um mundo que parece ser real, mas que na verdade tem uma história insana e completamente diferente da nossa, ao mesmo tempo que usa dessa camada de surrealismo para ser incisivo em assuntos que se conectam à nossa realidade. você sente muito a vibe de obra vinda do leste europeu aqui, tal qual a vista em eurojanks como stalker e pathologic. me apaixonei pelas histórias de fracasso e tragédia que permeiam revachol e que a tornam um lugar tão decadente e miserável, algo que permite que nosso protagonista possa ser tão descontrolado, esquisito e violentamente humano quanto o cenário que o jogo habita.

um ótimo detalhe de design presente é como o jogo te força a não ser mediano em seus diálogos ou nas decisões que envolvem rolagem de dados. os conflitos da narrativa são sempre cinzas e tomar um lado de um conflito te faz enxergar com clareza as pessoas que você não gosta presentes nele, donas de uma versão bem deturbada da sua visão. mas assim como na vida real, ficar realmente em cima do muro é impossível. se omitir é deixar com que o lado que já ia ganhar na violência prevaleça. não é possível se omitir em disco elysium, e isso é um forte tremendo da narrativa e da estrutura de escolhas. você é a favor do sindicato em greve, ou a favor da empresa querendo acabar com ela? você é um cara chato seguindo a papelada ou um pregador do apocalipse pra todo mundo que te olha estranho? você faz parte do underground homosexual (mesmo talvez não sendo gay)? você se arrumou no espelho de manhã pra não parecer um completo lixo? ou passou uma investigação que durou dias inteiros com uma face tão incompreensivelmente patética e melancólica, que o jogo fez questão de mistificar ela como "a expressão", como um ato que te separa de qualquer outro ser humano decente do universo?

acho que comparar esse jogo à uma espécie de "teste de alinhamento político", como se ele fosse um substituto de teoria política verdadeira é um exagero, visto que as vertentes presentes tem detalhes ultra-específicos que se referem a acontecimentos da lore (vou deixar esses detalhes da discussão pra caso a minha namorada queira falar sobre disco elysium aqui, ela entende bem melhor sobre o assunto). essa atitude é um pouco compreensível, visto que poucas coisas discutem esse tema de forma tão direta, mas um tanto cômica considerando que até mesmo para uma obra escrita por pessoas que citaram marx e engels após terem sido premiados no game awards, existem vários arquétipos de teóricos de esquerda que são tão satirizados quanto os de direita. disco elysium tem um tom de pós-derrota muito específico nas rotas comunistas que me soa bem tangível, considerando a decepção vinda de uma revolução fracassada que aconteceu naquele lugar, cujo fracasso gerou uma retaliação centrista que não apenas dizimou seus inimigos políticos locais (junto com outros civis não envolvidos), mas também destruiu inúmeras estruturas usadas pelo público e nem se importou em limpar o próprio estrago. ao mesmo tempo que o comunismo recebe a autocrítica, somos lembrados que quem deixou a vida dos cidadãos infinitamente mais precária foram as forças contrárias que arrancaram um lugar à força, apenas para deixar os corpos putrefazendo.

como eu disse antes: tenho muita paixão pelo lado humano. aquilo que mesmo que em uma atmosfera de fracasso, repleta de pessoas que te desprezam, te destratam, e que abusam do poder para passar por cima de quem já não tem nada, persevera no olhar melancólico e esperançoso de uma mãe viúva que vive da pesca e que tem uma espada maneira. de sua filha que pegou umas luvas de armadura e que foi super gentil quando eu perguntei onde elas estavam. daquele pentelho que me chama de viado. quando eu terminei a história, fiquei um bom tempo apenas observando o menu principal do jogo. são poucas as obras que conseguiram me deixar paralisada ao final. a experiência que eu tive aqui foi única, e eu me sinto muito grata por ter tido ela.

Reviewed on Nov 27, 2023


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