(Escrito em 2015)

No período que passei explorando os clássicos RPGs antigos, principalmente da Obsidian, esse era o que eu sabia no fundo que seria o melhor. Planescape: Torment possuía uma adoração quase religiosa em qualquer lugar na internet, sendo quase universalmente reconhecido como o jogo mais bem escrito que existe e o jogo que possui a melhor história e narrativa de qualquer jogo. Mas com uma mentalidade de “deixar o melhor pro final”, eu me segurei de jogá-lo por alguns anos, finalmente cedendo nos meses anteriores. Devo dizer: Realmente deixei o melhor pro final.

Não tenho coragem de dizer que Planescape: Torment é apenas um jogo, por mais absurdo que soe dizer isso. Acredito que o seu padrão de qualidade está tão além de outros jogos que classificá-lo como apenas isso é diminuí-lo, portanto o classificarei como uma experiência. Até porque, principalmente, as piores partes de Planescape são exatamente aquelas que te lembram que você está jogando um jogo, principalmente o combate. Mas falarei bem dele antes de falar do que não gostei.

Planescape: Torment se passa na setting Planescape, uma aventura de D&D que temos diversos planos misturados numa geografia bizarra que corresponde ao seu alinhamento, o que não irei explicar agora. O que é importante falar do ambiente de Planescape é que ele se passa em Sigil, uma cidade que é como se fosse o ponto por onde todos os portais do universo passam. Sigil é uma espécie de centro do multiverso, onde se tem de tudo, até o que sua mente não consegue nem compreender. A atmosfera do jogo em todos seus diversos lugares, não só Sigil, é genialmente composta. Todos personagens tem suas crenças e ideais muito bem definidos e quase todo mundo que você conhecer vai ter algo de interessante pra te contar ou dar algum jeito de te imergir no local onde se encontra. Sigil e suas diversas facções interessantíssimas, além dos seus becos e cantos escondidos que guardam todo tipo de segredo que cabe ao jogador descobrir deduzindo as dicas deixadas ao ar livre é um dos melhores, se não o melhor setting que já vi para um jogo. Sem dúvidas é o mais original. O protagonista do jogo é chamado de Nameless One, tendo esse nome em vista que ele é um homem com o corpo completamente coberto por cicatrizes que simplesmente não pode morrer definitivamente. Toda vez que ele morre, acorda com uma memória fresca em algum lugar, sem saber o que aconteceu. Ao longo do jogo seu objetivo é encontrar a razão de você não poder morrer, e no caminho você passa por uma gigantesca e genialmente composta viagem filosófica que vai se revelando aos poucos com uma sensação de slow-burn que faz você absorver o mundo e o ambiente do jogo de forma natural, se imergindo no mundo e entendendo as complexidades de suas ações de forma fantástica. Também, durante sua aventura, o jogo não vai se cansar de te fazer perguntas que o irão te fazer sentar e pensar antes de responder, já que são perguntas que não só definem o seu Nameless One quanto também são perguntas de cunho filosófico que irão realmente te querer fazer decidir o que você (o jogador) pensa a respeito disso. O tema principal do jogo é explorar o que define a natureza de um homem, o clássico debate de “nature vs norture”, dessa vez sendo mecanicamente e narrativamente explorado numa sacada genial dos roteiristas, já que o seu personagem é o exemplo perfeito desse debate.

O ponto mais forte de Planescape: Torment, sem dúvidas, é o nível de sua escrita. Sendo um RPG clássico do Infinity Engine, é natural esperar muito diálogo, muita leitura e muitas opções de conversa e formas de abordar uma conversa. Pode-se esperar muito mais ainda, no caso de Planescape. O jogo TRANSBORDA de dialogo, sendo possível passar mais de 1 hora em uma única sala/ambiente opcional apenas conversando com os personagens. E as conversas não são apenas abundantes, já que o que elas tem em quantidade tem o triplo em qualidade. Temos personagens que irão te fazer rir, ter raiva, parar pra filosofar e te fazer pensar muito mesmo antes de dar uma resposta e até personagens que embora não te causem nada são simplesmente personagens interessantes demais para se ignorar. Além dos companheiros que o Nameless One pode ter em sua viagem, que são as companions mais ricas e bem trabalhadas que já vi em qualquer jogo, o dialógo genial e exploração tanto mecânica quanto intelectual não se limita à elas, embora note-se que o dialógo com quase todas elas é absurdamente bom. Teve vezes que abri o jogo, apenas conversei com minhas companions e desliguei de novo, vendo que havia passado 30-40 minutos desde que entrei. E o diálogo não se limita aos personagens, pois o seu nível de interação com o mundo também depende muito de descrições muito bem escritas de objetos, lugares, ações e etc. Cabe aqui explicar que o dialógo é a parte mais importante do jogo, podendo até ser considerada como gameplay. O dialogo de PS:T tem um sistema extremamente completo que além de engajar o jogador emocionalmente, também o engaja mecanicamente, visto que alguns dialógos podem ser vistos até como “puzzles” altamente interativos que fazem o jogador agir intelectualmente para resolvê-los (ou não), e muitos resultados de dialógos além de abrirem caminhos para lugares que mudam uma área ou um ato do jogo completamente também adcionam bônus permanentes ao personagem, fazendo você criar a história única de seu Nameless One não através de opções, mas através das suas opiniões e ações, assim fazendo menção ao tema principal do jogo. Considerar o dialógo o sistema principal de gameplay para Planescape faz muito sentido, vendo como ele se amarra tão bem com o propósito do jogo.

Agora para falar do problema mais absurdo do jogo, esse sendo o seu combate e elementos básicos de gameplay, como o inventário. O combate além de ser baseado num sistema de D&D arcaico que é extremamente complicado para um iniciante aprender, também é extremamente chato. A falta de opções táticas e da possibilidade de usar a criatividade do sistema para o combate torna-o muito fraco. Mesmo com 3 companheiros você acabava por resolver o combate sempre por clicar nos inimigos e esperar que eles morressem, numa dança ridicula baseada em sorte e apenas numeros, com input minimo em gameplay. O combate é provavelmente um dos piores combates que já vi em qualquer jogo, o que me causou a tentar evitá-lo sempre que possível. O inventário e seus problemas também se amarram nos do combate, vendo que toda vez que você matava ou derrotava algo você precisa clicar nos corpos de cada um e arrastar os itens um por um para seu inventário, que são apenas duas linhas verticais que não permitem nenhuma organização. O fato de ser tão péssimo organizar seu inventário junto com o fato de levar uns bons 5-6 segundos para retirar os itens de cada corpo vendo que não existe um botão de “Take All” ou que permitisse você abrir mais de um corpo por vez me fez passar pelo combate apenas rolando os olhos em tédio, como um trabalho que eu tinha que fazer até poder conversar de novo e ai sim me divertir.

Mesmo assim, embora tendo sua falha óbvia no seu sistema de combate, Planescape ainda é uma experiência que qualquer pessoa que se interesse tanto por uma narrativa genial ou por jogos em geral DEVERIA jogar. Ele é o exemplo perfeito de que jogos podem ser algo muito mais além de uma diversãozinha qualquer ou um hobby para se relaxar. Não gosto de comparar Planescape à outros jogos exatamente porque seu dialógo e engajamento intelectual está tão acima da grande maioria que chamá-lo de apenas um jogo não faz jus à sua grandeza. Planescape é uma experiência interativa genial e se um dia os jogos voltarem a ter esse padrão de qualidade colocada em coerência temática e exploração artística poderemos finalmente falar com a boca cheia que jogos são uma forma de arte que podem muito bem competir com qualquer livro e filme que temos por aí.

Reviewed on Nov 03, 2020


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