(Jogado em sua versão original, de Nintendo DS, em um Nintendo 3DS. Jogarei o remaster lançado recentemente em breve)

A era do Nintendo DS foi marcada por uma criatividade que caminhava junto com as limitações tecnológicas de sua época; um escopo menor dava espaço a uma liberdade maior, livre das garras do alto investimento de tempo e dinheiro, das expectativas de executivos.

Da grande mente que é Shu Takumi, o criador de Ace Attorney e pupilo de Shinji Mikami, Ghost Trick é um daqueles jogos que te fazem lembrar do potencial que os videogames tem de proporcionar experiências únicas sem nem precisar sair de casa. Claro que isso também pode ser dito de filmes ou música, mas os jogos conseguem englobar o que faz tudo isso ser especial, de forma ativamente interativa e conectando todos os seus diferentes aspectos para a síntese de uma obra que se eleva acima da soma de suas partes.

Se inicia sem muito contexto: uma mulher está prestes a ser assassinada. Assim como o jogador, o protagonista assiste de fora e não faz ideia de quem ele é, do que se desenrolou para chegar até aqui, e do que está acontecendo. Isto é, com a exceção de um pequeno detalhe: ele já está morto.

Por meio de um diálogo com um espírito misterioso possuindo uma luminária, o protagonista, chamado Sissel, descobre que também pode possuir e controlar objetos, e é o único que pode salvar a moça em apuros de sua morte.

Existem dois comandos principais: Ghost, que pausa o tempo e permite que o espírito do protagonista se movimente de objeto em objeto (mas com um raio de efetividade limitado à objetos próximos), e Trick, que permite executar uma ação específica ao objeto possuído no momento. Ao se deparar com um cadáver, é possível retornar aos 4 minutos anteriores à sua morte, que podem ser reiniciados quantas vezes forem necessárias, afim de reverter esse destino. Quando combinadas, essas habilidades abrem espaço para um leque de possibilidades e descobrir como utilizá-las perante aos obstáculos fornece um desafio simples, mas satisfatório.

O jogo inteiro não desvia muito disso, apenas aumenta a complexidade, alternando entre esses momentos de gameplay e diálogos. Conta com modelos 3D animados em um espaço bidimensional, que são sobrepostos por uma arte 2D representando o interlocutor, com expressões variadas demonstrando diferentes emoções de acordo com o que estão falando, como uma visual novel. O gênero de Ghost Trick é difícil de se descrever, e mesmo os mais próximos como aventura ou puzzle não são precisos o suficiente; mesmo na parte visual/narrativa, é um jogo ímpar, com múltiplas influências.

Após salvar a jovem, Sissel aprende que os dois estão intrinsecamente conectados, e se ele quiser se descobrir e desbravar os segredos por trás dessa noite misteriosa, ele deve segui-la; mas com um detalhe: há um prazo até a manhã do dia seguinte. Após esse limite, ele desaparecerá para sempre.

Com o mistério central estabelecido, Ghost Trick abre sua largada, e não para de acelerar até a linha de chegada. Dos personagens coloridos até os conflitos que se desenrolam e enrolam e desenrolam de novo, o jogo não decai, só segue em queda livre, em suas 10 horas de duração. É uma experiência concisa e marcante; não é apenas tudo o que precisa ser: é surpreendente.

Os jogos do Shu Takumi têm uma energia bem única, não só no jeito que seus conflitos são apresentados e se desenrolam, de forma leve e descontraída sem perder a seriedade, mas na caracterização de seus personagens. Existe um equilíbrio perfeito entre o exagero em suas caricaturas e a empatia com que os trata, entre os seus comportamentos surreais e o realismo em suas decisões.

É engraçado e charmoso: o Inspetor não precisa fazer poses e gestos exagerados à la Michael Jackson toda vez que entra em cena, mas ele o faz porque pode e deve e é maravilhoso. O chefe da polícia não precisa tirar seus sapatos e coçar suas pernas com os pés toda vez que fica nervoso, escondendo isso atrás de sua mesa para ninguém perceber, mas por que não?

São pequenos detalhes presentes em cada personagem, independentemente do quão pequeno é seu papel, que não servem só para charme, eles adicionam profundidade de forma sutil e efetiva, levando o jogador a se importar, mesmo se subconscientemente.

Isso vale também para a história. Pontos importantes são entregues de forma gradual e leve, às vezes até inesperada, ou ainda cômica. Podem até passar despercebidos, mas mesmo de forma subconsciente a narrativa vai formando uma imagem gradual na mente do jogador, que se fortalece a medida que o jogo avança, às vezes até se aproveitando disso para ludíbrio, reviravoltas.

A qualidade do roteiro não desaponta. Todas as perguntas que o jogo planta são respondidas de forma satisfatória, e mesmo as mais absurdas são devidamente desenvolvidas e não destoam do que as procedem. Os personagens incríveis que protagonizam essa história -e não dá para deixar de mencionar o melhor lulu da pomerânia da história, Missile!- recebem desfechos dignos; ninguém fica de fora.

Nunca existiu e nunca existirá outro Ghost Trick. Uma ideia única, executada de um jeito único, em uma época que nunca mais irá voltar. Não é popular e nem influente, não moldou tendências; mas vai ficar marcado em quem jogou, do jeito que merece: como um jogo perfeito.

Reviewed on Aug 14, 2023


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