Sinto que aqui se encerra, por enquanto, minha jornada nessa épica familiar. Mas deixo essa aventura retida com ternura e expectativas, para que quando voltarmos a nos ver seja um desafio no meio de um momento em que, espero, seja mais simples a minha vida. Talvez lá, eu esteja feliz o suficiente para aproveitar tudo que me resta nessa franquia. Por hora, meu estado de espírito não me permitiu descansar sobre Devil May Cry 3 e, por estar exausto, Devil May Cry 3 me cansou.

Mas também, por estar exausto, Devil May Cry 3 me fez chorar.

Eu sempre fui uma pessoa muito ligada à família. Passei 12 anos como filho único, o que me deixou muito próximo aos meus pais. Depois de ver minha irmã nascer, entendi o amor. Apesar de meus pais trabalharem e passarem grande parte do dia fora, tive minha avó próxima a mim, assim como tios e tias com quem aprendi tanto. Nunca fui alguém com muitos amigos até chegar na adolescência, então durante a infância meus melhores amigos foram meus primos com quem estive praticamente toda semana por grande parte de minha vida. Eu fui moldado por minha família em vários aspectos e sou o que sou hoje por conta deles. Sou muito grato pela família que tenho e acredito que tive sorte. Mas então, por que me afastei?

Vivemos e tentamos seguir expectativas alienígenas, tentamos chegar o mais distante de tudo que nos criou, seja bom ou ruim. Eventualmente, estar longe da família se confunde com sucesso, sair do ninho é como finalmente ter alcançado o que queríamos, é um triunfo.

Durante o início da minha vida adulta me distanciei muito de minha família. Pessoas que eu amava e contava os dias para reencontrar, hoje eu sequer sei como estão seus rostos, quais histórias carregam, quais expressões os marcaram e como seus olhos se comportariam ao me ver? Vão franzir, sorrir ou ficar imóveis, indiferentes?

Depois de me distanciar eu tenho medo do reencontro, ao ponto de me mudar para outro continente com medo de pedir desculpa pela decisão de me afastar. Por muito tempo pensei que me detestavam. “Por que ele não vem mais?”

Família pode ser uma benção, mas pode também se tornar um peso que machuca a cada passo que damos, nossos joelhos doem e qualquer queda parece ser fatal. Mas no meu caso, eu cultivei esse peso. E eu precisei estar fisicamente distante para entender o mal que isso causa não só em mim, mas na família também. Não foi por mal, sequer foi por pensar. Fazemos escolhas inconscientes, e com isso, fazemos renúncias silenciosas. Família, no meu caso, foi uma renúncia constante e isso me machucou e machucou muita gente até então próxima. A distância machuca muito mais quando vem de uma escolha.

Eu estava com tudo isso em mente quando vejo um jovem Dante em seu recém-aberto escritório. Parecia uma adolescente brincando de adulto e isso foi cativante, afinal, é o Dante que eu conheci, só que mais jovem e imaturo em vários aspectos. Primeiro, Dante é jovem em sua prosa, com piadas constantes e um narcisismo digno de um adolescente do ensino médio que foi pela primeira vez à academia.

Também, Dante é imaturo em seu combate. No DMC2 e até no DMC1 vemos um Dante fatal, pouco esforço já basta para resolver o problema (isso principalmente no 2!). Aqui Dante faz malabarismos que não se justificam a não ser para se provar, seja para nós, interlocutores, ou para ele mesmo e suas expectativas. Ele parece ser forte o suficiente para lidar com inimigos com facilidade, mas claro que é mais legal fazer essas cenas mirabolantes de luta. E não reclamo, a cena da moto é uma das maiores dessa franquia e esse toque adorna a gameplay que é a mais espalhafatosa até então. Inimigos agora precisam de mais porrada e você precisa fazer combos mais bonitos para causar mais dano. É quase como se o objetivo aqui não fosse derrotar os inimigos por você ser mais forte, mas se provar mais forte ao derrotar os inimigos, e fazer bonito agregar muito nesse aspecto, apesar de não ser um fator que me apetece (inclusive me entedia).

Mas o sabor desse jogo está na superação substancial do maior ponto de imaturidade de Dante: Dante é imaturo ao se tratar de família.

Já sabemos o quão quebrado está Dante. No Devil May Cry tínhamos um Dante com um claro senso de compaixão, herdado pelo que parecia ser uma família amorosa, mas separada pelas circunstâncias da vida. Dante já possuía certa maturidade ao lidar com isso, e não tinha vergonha de demonstrar ternura quando se tratava de seu pai, irmão ou mãe. Em DMC2, Dante passa isso adiante, enfatizando a importância de uma família saudável, mesmo que não seja de sangue. Em DMC3, vemos um arco de crescimento de Dante e seu “coming-of-age” brilhantemente entregue com a sua relação familiar sendo colocada à prova pela contraposição de seu irmão gêmeo como antagonista do enredo, mas também como o inalcançável obstáculo ao ter abandonado seu laço familiar e o ter reduzido a “Poder” se tornando assim a figura do irmão mais velho que abandonou o ninho.

E aqui DMC3 brilha com seus personagens coadjuvantes, Virgil é essencial não apenas para DMC3, mas como a Franquia como um todo até então. Virgil é a forja do destino de Dante, e surge como uma provação, um trabalho que Dante deve enfrentar fisicamente e essencialmente.Virgil é mais forte do que Dante, e isso fica claro quando o vemos derrotar com apenas um golpe (ou nem isso) o primeiro chefe do jogo. Voltamos naquilo que mencionei mais cedo, é uma contraposição clara de demonstração de poder. Porém, a visão de família de Dante está nublada.

E é necessária a companhia de personagens excelentes como Virgil e Lady para Dante ressignificar o termo Família e decidir carregar novamente o peso da mesma. Se tornando ainda mais antagônico ao Virgil, que parece negligenciar sua criação, vendo-a apenas como um meio para o seu objetivo final.

Virgil nesse jogo parece ter passado pelo processo de emancipação, cortando qualquer laço familiar essencial. Enquanto Dante amadurece e percebe que não importa o quão distantes estamos, carregamos o peso da criação, do legado e do cuidado de quem nos cria, portanto, precisamos lutar para devolver e manter isso. Esse conflito se mostra atávico para os dois.

Ao final do jogo, temos o despertar de Dante, que em uma das cenas mais lindas da franquia, se encontra novamente em família com Virgil, mesmo que seja apenas por uma última afinação. A batalha em conjunto de Dante e Virgil é um daqueles momentos que só se pode traduzir em jogos.

Dante ter Virgil como aliado contra um inimigo que se apoderou do poder de Sparda, pai deles, é de um romantismo tremendo. Sem falar do simbolismo em não usar “devil trigger” e o intercâmbio de armas que acontece nessa cena. Naquele momento, eles cresceram. Infelizmente, o caminho de crescimento de Virgil é voltar ao ninho, mesmo que ele esteja vazio. Enquanto Dante precisa arcar com o peso de mais uma vez sair, se distanciar, mas dessa vez sabendo a importância que aqueles laços possuem na sua vida e o mais importante: O que significa Família. Tornando essa aventura ainda mais cruel e difícil. Sair por escolha machuca ainda mais quando a escolha é tomada conscientemente.

Quando Dante chora, eu estava ali. Durante esse caminho eu também cresci e adquiri uma habilidade fundamental para sobreviver. Eu aprendi a ressignificar Família e me amar nessa família. Uma família que escolhi ter, uma com quem posso dividir o peso da vida. Essa também é família, mas que só conseguimos enxergar de verdade quando caminhamos mais distante do ninho, quando nossos joelhos não aguentam mais e os braços de quem nos criou já mal conseguem nos alcançar para assistir, temos outras pessoas que surgem com um novo significado de família.

E por isso Devil May Cry 3 me marcou.

Não tiro seu mérito, no momento mental em que eu estava, poucos jogos fariam o que esse jogo fez. Ter tomado essa jornada me trouxe de volta para momentos familiares, esse jogo trouxe isso em mim. E eu entendo, assim como Dante, que o conceito de família muda. Eu tenho uma nova família agora, eu sei amar minha família e sei me amar nessa família sem esquecer de toda família que eu já tive e ainda tenho! De todo coração que cuidou de mim, toda alma que me protegeu, todo estranho que torceu por mim.

Eu amei, também, esse jogo.

Como pode um jogo ser tão improvável? Como pode em meio a tanto conflito, caos, incertezas e poluição, um jogo ter tanta ternura? Como pode uma franquia que causou tanto impacto, ser completamente diferente de tudo que a sucedeu?

Chorar em Devil May Cry é ser humano. É um tema que não poderia ser tão humano quanto o de família.

Estou muito feliz por ter jogado esse jogo.

Reviewed on Sep 23, 2023


6 Comments


7 months ago

Entendeu pra caralho

7 months ago

curtiu mais o 1 ou o 3?

7 months ago

Eu também sou uma pessoa muito ligada a família. Minha família é enorme, tenho dezenas de primos, e também compartilhei muitos desses momentos de amizade na infância com eles. Depois que minha avó se foi, a família se separou e cada um foi morar em um canto do estado do Rio. Me afastar da família não foi uma escolha, mas também tinha essas mesmas indagações que você.

Eu zerei Devil May Cry 3 pela primeira vez em uma visita a outra cidade justamente pra ver minha família depois de MUITO tempo, passando o controle entre primos quando eles estavam presentes. Que loucura né?
Depois de tantos anos sem ver minha família, onde os menores sempre tiveram a cultura de jogar muitos jogos juntos, eu zerei esse jogo na presença deles sem saber que o tema de família era tão forte, e bem explorado de todos os lados com os irmãos e a Lady.

Fico emocionado de ter sido o catalisador dessa jornada :')

7 months ago

@Lenz o 1 de longe.
Sinto que n teremos nada igual ao 1. Aqui não temos a dualidade de vulnerabilidade e implacabilidade q temos no 1, isso cresceu demais aquele jogo p mim. Especial demais S2

7 months ago

@noventaporcento que comentário absurdo. Porra, poderosíssima essa experiencia. Valeu Demais!

7 months ago

Caralho, arrepiei aqui. :'-)