(Escrita em 2019)

Death Stranding foi meu jogo mais esperado do ano; dos últimos 5 anos, quiçá. Conhecendo Kojima muito bem, já sabia que desde os primeiros trailers do jogo já começava a experiência de Death Stranding: se adentrar nesse jogo não é apenas o momento de jogá-lo, mas sim também a ideia de dar bola para todas as bobagens que o Kojima fará, dentro e fora dele. É impossível falar de Death Stranding sem falar da personalidade de Hideo Kojima: através de olhos ocidentais se mostra uma personalidade inconsistente, idiossincrática, cujas ideias sempre parecem ganhar e perder na tradução tanto léxica quanto cultural, o resultado disso gerando algo tão descaradamente Kojima, que justifica o meu desejo de abrir esta entrada falando dele. Tendo isto definido: Death Stranding é um jogo de Hideo Kojima como todos outros, com a diferença aqui sendo que ele pôde falar o que quiser e gastar o dinheiro que desejar. Esta ideia me empolgava, pois considero Kojima um dos únicos “autores” reais do mundo dos jogos, e a capacidade de receber uma obra original e guiada por uma visão forte com orçamento infinito parecia uma oportunidade inédita. A minha maior decepção com Death Stranding seria se, com toda essa brecha dada, Kojima não tentasse, ao menos, quebrar a hegemonia da visão de que jogos tem que ser peças de ação estrondosas e que o entretenimento sempre deve ser derivado destes picos de adrenalina. Claro, alguns gêneros são a prova viva de que não precisa ser assim, mas trazer um jogo meditativo para o AAA é algo que só poderia acontecer nas mãos dele.

Fico muito feliz em saber que Death Stranding foi este jogo que quebrou o molde da indústria, e que muita discussão (saudável e não) foi gerada ao redor deste título, que mecanicamente foi quase impecável. É impressionante a forma em que Kojima soube criar uma simulação interessante e divertida do ato de caminhar entre montanhas usando controles deliciosamente precisos e um design de mapa e ferramentas genial, que além de tudo conseguiu ser escondido debaixo de um cenário naturalista lindíssimo. Além disso, considerando os temas de solidão e união através da reconstrução, a ideia do sistema online do jogo foi perfeita, o fluxo entre trilhar ambientes conectados e desconectados representando um contraste emocional claro. Kojima, assim como eu, é uma pessoa que gosta de enxergar momentos de forma bastante cinemática e sensorial, e soube muito bem usar a sua trilha sonora de músicas licenciadas nos momentos exatos, produzindo vários dos meus momentos favoritos de todos os jogos que já joguei através de seu senso cinemático sublime. Passar alguns perrengues em uma caminhada, apenas para logo depois encontrar algo que algum jogador deixou para trás sendo sua salvação, para logo depois disso vir uma música licenciada que só tocará neste momento específico do jogo e contextualizará toda a experiência em algo maior - é fantástico, simplesmente. Eu aprecio que o jogo tenha tantos momentos destes, intencionais ou não, que significam algo único e especial para um jogador que passou pela sua própria pequena narrativa durante a caminhada que gerou este momento. Para um jogo que parece querer provocar a sensação introspectiva de uma trilha solitária e exacerbar a profundidade das pequenas coisas, ele excede todas as expectativas.

Death Stranding é, além disso, o jogo mais polido que já joguei em minha vida. A qualidade das animações, controles e a quantidade de interações possíveis que são muito bem animadas é de se esperar de um jogo do Kojima, porém aqui são elevadas à um novo patamar, graças ao orçamento infinito e as novas (caras) tecnologias. O jogo possui um senso estético fantástico (esperado de Yoji Shinkawa) e as suas qualidades técnicas são provavelmente as melhores que qualquer jogo já teve.

Nem tudo são flores, todavia. A escrita de Kojima sempre beirou uma linha tênue entre tosquice e profundidade, muitas vezes cambaleando para os dois lados no mesmo jogo - eu entendo, essa incongruência tonal é parte de seu charme. Ainda assim, é evidente em Death Stranding que ele escreveu todo o diálogo e pouquíssimo dele foi editado. Para um jogo que se preza pela sua narrativa humanista, em quase momento algum os personagens de Death Stranding conseguem passar através do diálogo a noção de que são seres humanos - o oposto disso, argumentaria, já que o diálogo muitas vezes horrendo acabou me alienando dos personagens, ao invés de me “conectar” a eles, como o jogo queria. Alguns momentos brilham entre a merda e a mediocridade, porém são escassos, e o jogo possui muito do diálogo ruim. Isso me impediu de simpatizar com a missão de meu protagonista, pilha de falas e reações inconsistentes que ele é, e fez com que eu nunca me importasse com os personagens da história em que via (fora do BB, que é calado), e sim mais com qual será a próxima trivela que o Kojima chutará na minha direção. Ainda assim, a narrativa possui alguns momentos especiais, e achei que ela soube se reconstruir muito bem no final, criando um final satisfatório de algo que eu não esperava que fosse dar em muito.

Este é um jogo especial, um projeto que sempre torci para que fosse tudo o que esperava e mais um pouco; a maior destas esperanças sendo a de que me surpreendesse e me oferecesse uma nova perspectiva de ludonarrativa, e fico muito feliz de considerar que as duas foram atingidas com louvor. Algumas falhas de design, como as boss fights repetitivas que não usam das mecânicas principais do jogo e a qualidade baixíssima de roteiro são apenas soluços perto do que esse jogo representou para mim, e das memórias profundamente sensoriais e sentimentais com que ele me deixa.

Reviewed on Nov 03, 2020


2 Comments


4 months ago

O trailer da sequel, que inicialmente eu era bem contra, me fez voltar aqui nesta cápsula do tempo.

Acho desgostante como meu eu-2019 fala tanto do Kojima - ainda que fosse um tema magnético e impossível de não se tocar - há toda uma equipe talentosa por trás do jogo e muito do que falo sobre "só ele é capaz de X, Y, Z" hoje vejo como realidade material de alguém que está na posição que ele está (ok, em partes conquistada). Realmente, só ele é capaz de fazer esse tipo de AAA hoje em dia, mas sim porque ele é o único que tem marketing o suficiente para se vender como o "autor" dos jogos.

Curiosamente, a outra parte em que me vejo discordando é em relação ao diálogo. Na época ainda estava preso em uma noção de que o único jeito bom de escrever um personagem simpático era através de diálogo naturalista, ideia que hoje em dia à qual sou avesso. Aprendi a ver um valor no jeito esquisito que Kojima e outros escrevem, apreciando o despejo absoluto de id no roteiro como a sopa de letrinhas ricas de subtextos intencionais e não que podem ser, além de claro ser uma forma de escrita extremamente divertida e pessoal de se ler e escrever.

4 months ago

Incríveis comentários, tanto o que projeta sua aspiração primária, quanto esse vigente sobre não somente uma avaliação pessoal, mas uma ressignificação dos sentidos expostos no jogo. Essa compreensão desse paradigmas idealizados de diálogo permeia toda a produção ocidental autofagica que submete as expressões exógenas como as asiáticas e tipicamente orientais a um assimiliacionismo na percepção alheia, ou seja, tendemos a menosprezar essas condições estéticas e estilísticas por condicionantes históricos e hegemónicos de uma narrativa tradicional, padronizada e com forte teor de tecnicismo e esvaziamento da multiplicidade. Estou comentando isso porque lembro que fazia algo parecido com Resident evil 4, preteria a sua morfologia estilística por ser um jogo ocidentalizado e o compelia, claro, a ser um bom jogo pelo gameplay, mas não pela história e o resto, mas hoje, na verdade, vejo como uma emissão de resistência, tanto por parte do jogo, quanto minha, no sentido, de, filosoficamente, permitir epistemologias diversas mediante o maquinario sistemático da imagem interativa e, por extensão, da linguagem, e, de outra, de se opor a esse padrão homogêneo da indústria ocidental autofagica, até porque esses japoneses estão se submentendo a codificar outro enquadramento cultural e de signos externos, então, pelo menos na expressão, no estilo, na sensibilidade sensorial, na estética e na mobilização cênica tem de a ver ruptura, mesmo que abstrata, como forma de autorreflexão desse processo de exportação, não somente do produto reificado, mas da subjetividade, expressão mesmo que subjacente, ainda emerge como valor mais substancial.
Por fim, boa análise e (auto)crítica