Não sei qual é a minha com jogos de corrida: não gosto de dirigir e não me interesso nada por carros, ao ponto do desleixo com o que tenho. Ainda assim, existe uma fortaleza neon em minha mente que foi construída por memórias infantis de Nissans 350Z e Mitsubishi Lancers deslizando pelos Need for Speed de PS2. Ao longo dos anos, sempre vinha a vontade de visitá-la de novo: tentei tapar o buraco com Forzas e outros, e sempre saía insatisfeito - Horizon não me entende. Unbound, por vez, parece ter sido construído para conectar as sensibilidades do eu criança e do eu agora.

Uma coisa que me desanima em jogos de corrida modernos é a casualidade com que todo o rolê é tratado. Bem vindo ao CarrosFest, onde todos seus sonhos se tornam realidade! Toma aqui um Lamborghini, uma Ferrari! Rode uma roleta pra ganhar o seu décimo sexto carro mesmo tendo corrido só quatro vezes! Você é o protagonista desse mundo e ele gira ao seu redor! Errou uma curva? Só voltar no tempo! Me erra. O ideal platônico da vibe de um jogo de corrida é o mesmo que um anime de mecha - cada uma dessas máquinas é uma extensão da possibilidade humana, imbuída de personalidade e capaz de mudar o mundo com o ronco de seu motor, e pessoas movem montanhas pelas mais notórias. Unbound os dá essa importância mecanicamente, agindo ao redor de um soft timer: ou você junta o dinheiro suficiente pra avançar na cadeia, ou roda e tem que repetir tudo. Bateu? Azar o seu, use um dos seus resets limitados do dia e tenta de novo. Não tá mandando bem nas corridas? Vai ter que ralar muito pra conquistar os carrinhos mais mixurucas. Ficar bom o suficiente para começar a ganhar as corridas nesse jogo foi um processo extremamente satisfatório, as consequências de uma curva errada fazendo com que cada viradinha ou lance arriscado virem um momento sangue nos olhos. Toda vez que eu ganhei uma corrida, até as de lavada, senti que mereci. Claro, como estamos tratando de AIs de corrida, temos situações de rubberbanding que fazem com que a realidade que é imposta sobre você seja diferente do que a dos adversários, o que pode gerar situações em que você perde na injustiça e tem que engolir. Papo reto? Eram tão poucas que levava no queixo como crédito pras vezes que a sorte me ajudava. Não dou crédito apenas à minha maturidade como corredor: ter ampla recompensa para quem não chega em primeiro ajuda bastante a engolir o fato de que não dá pra ganhar todas.

O loop sagaz de Unbound ser tão engajante não serviria de nada se os carros em si não fossem gostosos de dirigir. Como já falei, a fantasia infantil de Velozes e Furiosos ecoa muito mais forte em meu coraçãozinho do que o amor por carros, então não costumo ter interesse algum em verossimilidade - minha métrica de dirigibilidade é baseada no bom, velho e subjetivo game feel. Não consigo pensar em nenhum jogo em que já achei carros tão gostosos de dirigir quanto aqui. Os carros se comportam exatamente como eles parecem, seus perfis esbanjando exatamente a fantasia que evocam: os Lamborghinis são uma bala inerrável, os Subarus e Nissans deslizam sob as ruas com graça. A mecânica de boosts de nitro baseados no perfil do seu carro e do motorista ainda permitem a criação de ‘builds’ para adaptar o seu carro ao seu estilo de pilotagem e/ou os trajetos do dia. Não há nada como fazer curvas em alta velocidade numa corrida de final de torneio - por aqueles poucos segundos o tempo flutua, o ronco do motor bradando o hino do fluxo absoluto. Perseguições policiais, ainda que exageradamente abundantes, fazem com que o trajeto entre corridas sempre tenha algum grau de tensão presente. É um pacotinho muito bem amarrado de mecânicas.

O jogo é estiloso pra um dedéu também. Tanto em sua estética quanto em sua história e diálogos ele adota uma visão meio cringe e fofinha ao redor de arte de rua, apresentando uma versão um pouco gen-zificada da cultura de racha de carro como arte transgressiva. Pra mim, colou legal: o casamento faz sentido e existe sim, ainda que não seja flores como o jogo apresenta. A estética vende a fantasia desse utopia carrista: a tela pipoca o tempo todo com efeitos crocantes e artes estilosas para elevar o SUCO do jogo ao máximo, e achei que a justaposição deste estilo e dos seus modelos cell-shaded com os carros realísticos gerou uma identidade visual estilosa que sobreviverá bem ao teste do tempo. A narrativa do porquê você está correndo as corridas que corre peca um pouco, especialmente quando envolve o conflito central da trama (a protagonista e a Yaz). Ainda assim, achei que as performances dos VAs foram muito boas, capazes de vender com bastante charme um diálogo que tinha de tudo para morrer numa mistureba desagradável de comentário a la Bojack Horseman e Marvelzada insossa.

O tom extremamente positivo é real, porém para que o traga de volta à terra um pouco: é um pouquinho mais longo e repetitivo do que eu gostaria, com pouco brilho dado à rica gama de motoristas rivais visualmente marcantes que o jogo tem - ainda que existam algumas sidequests divertidas sobre bater um papo com eles. Acho também que o jogo poderia aumentar consideravelmente o valor de revenda dos carros: até o late-game, comprar um carro que você não gostou pode ser uma sentença de tédio, já que demora tanto para conseguir outro. O coração enaltece as memórias boas e deixa as ruins no retrovisor: em retrospectiva, sinto que tô procurando pelo em ovo nesse parágrafo.

Unbound é uma série de tacadas corajosas e certas de uma franquia que estava precisando de alguns acertos, e zunar pelas luzes de Lakeshore foi um dos meus maiores prazeres do ano.

Reviewed on Jul 22, 2023


3 Comments


10 months ago

belo texto, irei baixar esse jogo imediatamente no gamepass! minha experiência com jogos de corrida é bem parecida com a sua, não me interessa a vibe contemplativa de Gran Turismo, mas o lúdico do Hot Wheels de PS2. Espero que esse jogo resgate essa sentimento como resgatou para você.

10 months ago

Cacete alado, 4,5... Strong and brave 👏

10 months ago

O jogo é MUITO BOM. Não entendi o hate quanto é o primeiro em muito tempo que sinto que traz personalidade. Teria curtido mais se a polícia não fosse um chute bem dado no meio das pernas.