80 Days 2014

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37h 9m

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3 days

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August 26, 2023

First played

September 28, 2022

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Se eu tivesse que descrever 80 Days em uma palavra, a palavra seria "subversivo". Felizmente não sou limitado a usar apenas uma palavra para descrevê-lo!

80 Days subverte Jules Verne de duas formas. Primeiro, e de forma mais óbvia, há a pegada steampunk que o estúdio inkle dá a história. Esses elementos steampunk se integram perfeitamente à obra original, que tem um grande foco nas movas formas de transporte da época e o alcance global do império britânico. Se coisas como ferrovias e barcos à vapor não impressionam tanto os leitores modernos como faziam em para os do século XIX, com a abordagem steampunk a sensação de deslumbramento é resgatada — descobrir que formas intrigantes de transporte vamos encontrar pela frente, sejam camelos mecânicos ou cidades flutuantes, é uma das partes mais prazerosas do game.

A segunda forma de subversão é como o texto colonialista e imperialista do original ganha aqui um subtexto anti-colonial. Essa subversão é profunda, já que não se limita ao autor. É uma desconstrução do próprio gênero de literatura de viagens do original e do steampunk da nova obra. Esses dois gêneros são quase que inerentemente coloniais e imperialistas: o primeiro fruto da era das Grandes Navegações e apresentando ao público europeu um mundo novo selvagem e exótico; e o segundo fundando-se numa extensão fantástica da primeira revolução industrial. Mas esses gêneros não precisam ser assim, e a roteirista Meg Jayanth consegue brilhantemente inverter essa epistemologia. Viajar é uma forma de conhecer novos lugares, aprender sobre novas culturas e, ao final da jornada, mudar a si mesmo. E nesse mundo steampunk em que você viaja e descobre, a fantasia é usada não para repetir no imaginário as estruturas de dominação da realidade, mas para imaginar caminhos não seguidos por aqueles que bravamente resistiram a dominação. Isso sim é botar o punk em steampunk.

Le Tour du monde en quatre-vingts jour é uma obra (extremamente) colonialista e imperialista. 80 Days é uma obra sobre o colonialismo e imperialismo.

Jules Verne era um burguês europeu típico do século XIX. Isso não justifica o exacerbado imperialismo e racismo de suas obras, apenas o explica. Entender as razões do porquê uma obra de seu tempo é problemática em nosso tempo não a torna mais digerível.

Não obstante, a obra de Verne não era somente imperialismo e racismo. As preocupações e interesses dele eram outros, muito mais pautados em avanços da geografia, cartografia e meios de transporte de seu século. Seu legado, por mais problemático que seja, é inegavelmente importante para a literatura, especialmente de ficção científica. Entretanto, não é como se pudéssemos simplesmente ignorar as partes problemáticas do trabalho do autor e só nos focarmos nos aspectos mais palatáveis. Os próprios avanços científicos e tecnológicos que tanto interessavam Verne por vezes eram consequência do imperialismo, por outras o alicerçavam.

Ao adaptar uma das obras mais famosas de Verne para o meio digital através de 80 Days, o estúdio Inkle decide sabiamente desconstruir frontalmente seu caráter neocolonial em vez de ignorá-lo. O resultado é um mundo que parece genuíno, com vários problemas e contradições, mas também muito a se descobrir e ponderar.

Phileas Fogg continua sendo o über inglês fleumático e inexpressivo do livro. A perniciosa ação de seu império continua sendo inescapável não importa que parte do globo você vá. Mas aqui as várias localidades que você visita não são meras colônias inglesas que deveriam ser gratas por estarem sendo "civilizadas", ou povos subalternos exóticos que só podem ser compreendidos quando comparados negativamente com o Reino Unido. Cada lugarzinho em que você passa tem sua própria história e as formas de resistência e apropriação que fazem do legado do colonialismo europeu é expressa em deliciosa prosa que nunca me canso de ler.

O jogo adiciona elementos de steampunk à narrativa de Verne, algo que pode parecer supérfluo ou que de forma contraproducente exacerbaria ainda mais o caráter imperialista-colonial da obra original. Em verdade é o contrário. O steampunk é aqui pensado com uma historicidade similar à própria Revolução Industrial: um fenômeno global, não uma exclusividade inglesa. Presenciar a enorme diversidade de autômatos, airships, submarinos e armas que cada nação representada criou e adaptou para sua realidade é fascinante e um dos pontos fortes do jogo.

Esse elemento de steampunk cria algumas oportunidades bem legais. Mais do que representações de resistência e apropriação, 80 Days nos permite pensar em legados além do imperialismo. Pegue algumas rotas passando pelo continente africano ou pelo Pólo Norte para ver isso.

Falando em rotas: que jogo cheio de possibilidades. Eu zerei ele umas dez vezes, fora partidas que comecei e reiniciei. Cada uma das partidas foi uma experiência diferente, com novas facetas do mundo se revelando para mim, e ainda tem muito do jogo que ainda não vi. Cada uma das partidas pareceu de fato uma volta ao mundo — mas em umas duas horinhas, em vez de oitenta dias.