provavelmente a coisa que eu mais escrevi, falei e pensei a respeito nos últimos 15 anos. vou deixar para a próxima geração agora.

esse jogo exala um certo tipo de sexualidade que não é comumente explorada: ela exige certos rituais, atenção, até beleza, mas é completamente desprovida de ego. nada é performativo. percebi que eu não tenho muita afinidade com os grandes jogos de ação dos nossos tempos (bayonetta, dmc) em partes justamente porque eles são extremamente performáticos, os personagens se comportam de forma titilante, confiante, e sabem que há uma câmera ali os assistindo — suas frases são ditas para alguém ler, seus movimentos são feitos para alguém assistir, e até mais: para alguém controlar. é nossa responsabilidade ou afirmar o dante ou fazer ele ser um mentiroso, mas todos os comandos são expressões de ideias dos personagens, toda virada é auto-consciente; um espelho de teto no motel, a gravação de celular, o culto à própria performance.

o ryu não atribui uma moral aos seus movimentos: se você não fizer o que o jogo quer, você não passa, e se você passou, é porque fez o que o jogo quer. não importa quantos itens de cura usou, quantas flechas de fogo, quantas vezes a Alma te matou com uma coluna de mármore (e a igreja ainda se manteve em pé): se foi, foi. ele te tranquiliza mostrando que nem toda vez vai ser tão boa assim, mas que o ato de se despir já é coragem o suficiente e comunica infinitas passagens. não acredito que seja uma eficiência clínica, mas confiante. é impressionante intrínsecamente conseguir jogar, sem a parte extrínseca do rank e dos combos; seja greater ninja ou ninja dog, a parte importante é ninja.

aquela citação da phillys diller do "never go to bed angry; stay up and fight" alcança outros significados aqui, demonstrando certa intimidade com o processo que permite tornar o que é sexy em algo rotineiro, menos preocupado em impressionar e mais preocupado em comunicar que mesmo que dessa vez não dê certo é só tentar de novo.

em 2015 eu argumentei que o ninja gaiden original era o primeiro jogo que poderíamos usar para impressionar um interesse amoroso, e agora consigo dizer que o ninja gaiden black é casar com ela.

jogo de criar amigo imaginário mas de um jeito meio realista pois eles vão ter as próprias afinidades e caminhos evolutivos que independem de você (personagem/jogador) e inclusive pode ser que você fique para trás, não aguente o tranco, precise ser recrutado de novo e mude de nome, mas os amigos continuam lá no seu caminho determinista traçado pelas mãos do destino (só jogador, nesse caso). e aí chega no final e tal jogador ainda tem a pachorra de matar alguém igual a ele, que vê aquele mundo só como diversão, como arte, como lição de casa, porque ele se identifica mais com a câmera do que com o espelho. pós-ficção, argumento de que navegar num site é jogar, lúdico de modo que te lembra de um dado sempre que olhar pro céu; tudo o que existe te serve, destrua quem ameaçar tirar o controle da sua mão; largue-o por vontade própria

2021

aquelas pessoas que por medo da criatividade compartilham do sentimento de que "a cortina é azul porque ela é azul" e brincam que o leitor pretensioso vai ver pong como uma alegoria à guerra fria têm pesadelos com esse jogo todas as noites, acordam suadas, sem entender o porquê

emulação de manifestações do caos, brincadeira com divinação de um modo muito puro (como em "cru"). cria imagens bonitas só pelas frutas e a possibilidade de pintar um quadro utilitarista com ferramentas que você não escolhe. contempla uma qualidade minha pouquíssimo valorizada: a teimosia.

como em visual novel o vocabulário é o level design, sempre tento sinestesiar o modo que os personagens falam em abstrações estéticas que se manifestam em cenários. o jeito que a inno fala é um mundo de mario inteiro porque ela tem várias vozes diferentes: a narração, o diálogo interno, o pensamento e o jeito que ela conversa com os outros. como você imagina um parênteses ao falar consigo mesmo? como você organiza as palavras? três desses mapas são apresentados da mesma forma: as palavras soltas na caixa de diálogo. a conversa com os outros, como esperado, é sinalizada através da expressão do ser: tem o nome dela, na cor da roupa dela, indicando. as primeiras três não. são cenários misteriosos, fases escuras com alguns holofotes apontando pequenas flores de espécies diferentes.

tem uma hora que a inno fala que é um diário. o diário dela? escrito no presente? é difícil demais escrever no presente, se vê que ela tem problemas sociais não resolvidos mesmo. não precisava nem do ritual pra descobrir isso.

o elevador é o único santuário de um prédio corporativo

documentário extremamente factual e rigoroso sobre as maiores empreitadas artísticas e os mais terríveis medos da humanidade

escrevi em inglês sobre esse jogo e o modo como a moda era usada para mascarar a sua classe social nos anos 2000: https://www.superjumpmagazine.com/the-bouncer-is-a-fashion-statement/

boa adição ao meu quisto cânone de jogos japoneses de tiro sobre a instrumentalização do corpo sem apego identitário em que os personagens vão andando em mapas cada vez mais orgânicos para entenderem que a carne sem alma é uma afronta à existência lançados no começo dos anos 10 (os outros são the 3rd birthday e quantum theory)

todas as mais tocantes histórias do mundo e nenhuma delas tem a ver com você. um observador ativo, alguém que permite e causa a felicidade dos outros sem receber curvas deterministicas em troca; ver as mais variadas (bonitas, feias, tóxicas, diligentes, zelosas, malvadas) formas que o amor tem de se manifestar e permitir (e até possibilitar) que elas aconteçam sem atribuir uma carga moral às próprias ações, afinal, é seu trabalho, como o de um diretor, ou o de deus. alguns deuses guardam o julgamento silencioso para o fim dos tempos e alguns são manifestações de todas essas mazelas humanas por si só, abraçando a própria natureza como verdade com v maiusculo como demonstração de Ser. qual desses é o menino de moon? qual desses é o jogador de videogame?

o segundo disco de xenogears se xenogears fosse (além de todas as coisas do mundo) sobre o onze de setembro

me coloque numa sala com 20 pessoas que dão “dicas de escrita” e só eu sairei vivo, causando explosões e derretimentos só com a força negativa que mentalizarei cada vez que alguém falar que “mostre, não conte!” é uma regra indiscutível. com meu martelo de Depende em mãos eu destruirei todos os guias sem asteriscos.

trails from zero não deixa de contar para mostrar, mas acredito que pela limitação estética que os spritezinhos charmosos tem, ele acaba se sentindo na obrigação de mostrar que está sendo contado. as aspirações literárias da série não são segredo pra ninguém — levante uma pedra e quatro fãs de trails vão te falar que o SC tem não sei quantas mil palavras a mais que senhor dos anéis, descasque uma cebola e nove vão enxugar os olhos antes de te dizer alguma frase com a palavra “worldbuilding”, e chacoalhe uma árvore se encontrar alguma — mas por estarmos em uma tela (e não em uma folha), a sentença “’Você está preso!’ Lloyd disse, exalando coragem” não cabe numa caixa de diálogo, que, portanto, é substituída por “Você está preso!”, seguida pela observação “como o Lloyd parece corajoso enquanto diz isso!” de outro personagem. pelo menos um quarto dos diálogos do jogo envolve um outro personagem apontando que o personagem que acabou de dizer X está no estado Y, ou te explicando como aquilo se relaciona com outro evento que rolou dez horas atrás. não dá pra só se referir pelo nome (afinal, não dá pra voltar as páginas!), então toda informação nova precisa ser cheia de apêndices diegéticos pra não deixar ninguém pra trás. de certa forma, dá pra ver isso como consideração (e eu não pretendo nunca prezar pelo que "respeita minha inteligência", também), mas é também uma reação de vítima.

não é a pior coisa do mundo, mas a mitologia de que a Falcom sempre pensa nos jogos dessa série como um só e acaba dividindo em dois no meio da produção (Sky FC e SC, Zero e Azure, CS1 e 2, CS3 e 4) porque ficou maior do que o que foi projetado deve ser em partes por causa disso. eu não me importo muito com esse problema isolado (e acho que isso é uma das coisas que os fãs mais gostam), mas sinto que os desenvolvedores queriam se ver livres dessas amarras – até porque nos cold steel essa parte do texto já melhora consideravelmente (sendo que eu pessoalmente acho que os modelos 3D de CS1 e 2 são bem menos expressivos que os bonequinhos desses jogos que vieram antes) e a história toda continua funcionando de um jeito ótimo.

fico pensando se as coisas que desgostei não foram exacerbadas porque a base do lançamento oficial foi a tradução prévia feita por fãs e não por pessoas que tem alguma intimidade profissional com escrita artística, e por isso os personagens todos tem uma voz tão parecida e as descrições são daquele jeito.

o bom é que apesar disso esse jogo tem ótimas dungeons e eu adoro como o urbanismo pop de crossbell (todo mundo com carinha de soyjak deslumbrado com internet e energia elétrica, se sentindo foda porque não é república e nem império, etc) influencia e é influenciado igualmente nos aspectos sobrenaturais. a falcom é ótima em alimentar tanto a galera “intrigas políticas!” quanto a galera “aura de dragon ball na hora de lutar e robô gigante” que estão em constante contenda porque não percebem que a graça da série é justamente ter os dois. também achei super legal como o conceito de gnose aqui é mais próximo ao do nosso catolicismo (“certo tipo de conhecimento é perigoso e pode acabar com sua individualidade”), diferente de grande parte dos JRPGs em que ela é indubitavelmente boa e necessária moralmente para as pessoas descobrirem por si mesmas a raiz do bem e do mal. ela não é vista como herege e os apócrifos não são escondidos, mas se desenvolve como resultado de certo cientificismo que se demonstra laico mas não é. uma dinâmica bem original e facilmente refutada dependendo do rumo da história, também, então torna todo o caminho bem colorido.

cada vez que eu começo um jogo desses e lembro que ainda faltam outros seis cinco quatro pra eu chegar onde quero chegar na história me dá certo desânimo, mas aí chega o final e me motivo de novo, vendo as coisas lentamente se formando e ficando mais esotéricas, como todas as grandes obras. o descobrir das partes mais ocultas do mundo se dando tão lentamente acaba refletindo a vida real de um jeito inesperado, e aí vale a pena mesmo ver o sol nascer.


pode ser que a ideia de "superar o mestre" surja por sentimentos arrogantes, mas acredito que nesse caso aqui vem de devoção mesmo. no primeiro gunvolt parecia que a inti queria mesmo fazer um mega man mas precisava se forçar a fazer algo diferente para poder entender o mundo melhor; nesse aqui já exala uma confiança de quem nem precisa mais olhar na direção dos pais na plateia pra ver se eles estão te assistindo.